Há cada vez mais golfinhos mortos na nossa costa

Ao longo do presente ano, têm vindo a dar à costa em praias dos concelhos de Cascais e de Sintra vários golfinhos mortos, uma situação registada em vários outros concelhos com frente costeira. As fotografias e comentários publicados nas redes sociais sucedem-se. Apesar do aumento de casos contabilizados por quem costuma seguir esta triste estatística, pouco ou nada se sabe sobre as razões da ocorrência destas mortes, muitas das quais não parecem resultar de causas naturais. Algumas imagens mostram animais com as caudas decepadas e com ferimentos suficientemente graves para justificarem as mortes ocorridas. 

Entretanto, há algo que causa igualmente estranheza junto de quem tem acompanhado os arrojamentos dos cetáceos encontrados mortos nas praias ou junto à costa: as carcaças dos animais são quase sempre enviadas para lixeiras ou aterros com o objectivo de serem depois incineradas sem que sejam realizadas necropsias que permitam determinar as causas das mortes. A falta de análises e de estudos mais aprofundados regista-se apesar de os casos de arrojamento terem vindo a ser comunicados aos serviços do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), organismo que tem a tutela dos arrojados marinhos.

Nos últimos meses, os arrojamentos de golfinhos em praias de Cascais e Sintra têm vindo a aumentar. Em Julho, foram divulgadas nas redes sociais várias imagens de carcaças de cetáceos retirados sem vida de areais do concelho cascalense. O primeiro caso, ocorreu dia 5, na zona do Monte Estoril, onde foi recolhido um animal já em adiantado estado de decomposição, que apresentava cortes profundos nos flancos e as barbatanas já desfiguradas. Seguiram-se, dia 15, mais dois arrojamentos, um na Praia das Avencas (Parede) e outro junto à entrada da Marina de Cascais, sendo que este animal acabou por ser arrastado até à Praia das Moitas. Dia 19, apareceu outro golfinho frente à Guia. 

Tal como tem acontecido em outros casos, as carcaças destes quatro animais acabaram por ser rebocadas para a Marina de Cascais, onde foram recolhidos pela empresa Cascais Ambiente e posteriormente enviados para incineração. O facto de muitas vezes não ser realizado qualquer estudo para apurar as causas das mortes dos animais arrojados tem gerado alguma perplexidade e já levou mesmo alguns cidadãos mais preocupados com estas questões a lançarem uma iniciativa com o propósito de questionar as autoridades sobre esta opção, que não tranquiliza quem se preocupa com as questões da vida animal selvagem.

As operações de remoção dos animais arrojados em praias do concelho de Cascais são orientadas pela Autoridade Marítima Nacional, através da Capitania do Porto de Cascais, após “alertas habitualmente dados pela população ou por nadadores-salvadores”, sendo accionados os meios náuticos da Estação Salva-Vidas local para rebocar as carcaças para a Marina de Cascais, onde são recolhidos pela empresa Cascais Ambiente e posteriormente incinerados. De acordo com uma fonte da Capitania, “todos os arrojamentos são comunicados ao ICNF”, sendo que “os animais não são removidos sem a autorização deste organismo”, que nos casos assinalados, a exemplo do que tem acontecido em outras ocasiões, “optou por não enviar qualquer técnico ao local”.

Na missiva que está a ser preparada para ser enviada ao ICNF, a várias comissões parlamentares, entre as quais Agricultura e Mar e Ambiente, Energia e Ordenamento do Território, bem como a outras “entidades pertinentes”, os signatários assinalam: “Nos diversos testemunhos apurados não parece haver um procedimento comum de retirada destes animais, assim como não é realizada uma identificação do animal ou posterior necropsia, a deposição do cadáver é feito quer em valas abertas para o efeito, quer em vulgares aterros. A ausência de necropsia impede determinar a causa de morte com as inevitáveis consequências que dai advêm”.

Os promotores da iniciativa, que a deram a conhecer através da página do Facebook ‘Arrojamentos Portugal’ (criada por um grupo aberto à participação de todos para fazer o registo e partilha de ocorrências de arrojamentos na costa portuguesa), pretendem ver esclarecidas várias questões, como, por exemplo, saber quais são as entidades responsáveis pela identificação do animal e posterior necropsia. Pretendem ainda apurar se estas entidades estão aptas para operar em toda a costa portuguesa continental e insular, se existe uma base de dados com estes registos de consulta pública, qual o procedimento de retirada de animais arrojados, se existem meios adequados para esse fim e qual o destino final dos cadáveres. 

SITUAÇÃO TRISTE E PREOCUPANTE

Uma das pessoas que tem acompanhado de perto muitos arrojamentos ocorridos no concelho de Cascais é Miguel Lacerda, criador da Associação Ambiental CascaiSea e um dos fundadores do Museu do Mar, que tem dedicado grande parte da sua vida à limpeza dos oceanos, uma luta em defesa da Natureza e do Meio Ambiente que fez com que fosse homenageado pela Câmara Municipal de Cascais com a Medalha de Mérito Municipal atribuída em 2009. Este activista ambiental já retirou muitas toneladas de lixo marinho no litoral Oeste de Cascais-Sintra, sobretudo na faixa que vai desde o Cabo Raso à Praia do Caneiro, a Norte do Cabo da Roca. Mas também já realizou campanhas idênticas em plena Baía de Cascais, que mostraram que ainda há muita consciencialização e trabalho a realizar para reverter situações incompreensíveis de desrespeito para com a Natureza.

Desde os anos 70, quando trabalhava no Aquário Vasco da Gama, e mais tarde nos anos 80, quando trabalhava no Museu do Mar de Cascais, que Miguel Lacerda tem acompanhado com preocupação muitos arrojamentos de cetáceos e de outros animais. “É de facto notório um aumento significativo de arrojamentos de pequenos cetáceos no nosso litoral. Qualquer pessoa mais sensível, atenta e preocupada com a sustentabilidade dos Oceanos fica apreensiva e triste com a situação. Se em alguns casos conseguimos de imediato perceber a causa da morte, pelo tipo de lesões que os animais apresentam, numa grande maioria das mortes de cetáceos só através de uma avaliação mais incisiva, tipo necropsia, poderíamos tirar alguma conclusão.”

Segundo o fundador da Associação Ambiental CascaiSea, o arrojamento de um qualquer organismo marinho no litoral é natural. “O processo de decomposição desse organismo leva a que o mesmo em pouco tempo flutue e a partir daí os ventos, as correntes e a própria ondulação acabem por os arrastar para um determinado lugar, a não ser que seja ingerido por outros organismos, como acontece na maior parte dos casos”. Contudo, os últimos casos registados levantam preocupação, porque “é mais comum os arrojamentos ocorrerem durante os períodos de intempéries, quando os ventos sopram fortes do mar para terra. Todos nós morremos um dia, quer de morte natural, doença ou acidente, mas o facto de se registarem tantas ocorrências nesta altura do ano é garantidamente preocupante”.

Para determinar as causas das mortes dos animais seria preciso que as carcaças recolhidas fossem alvo de uma análise mais profunda, o que não tem acontecido. “O ICNF nunca aparece nestas ocorrências, cinge-se aos dados recolhidos pelas entidades que tomam conta das ocorrências, muitas vezes dados fornecidos por pessoas que nunca viram um animal destes à frente, mal o sabem identificar e os dados biométricos são o que são (comprimento total). A identificação é feita posteriormente através de fotografias, se estas o permitirem, caso contrário há sempre a desculpa de que está em ‘adiantado estado de decomposição’. A verdade é que a grande maioria destas carcaças, para não dizer todas, acaba nas lixeiras, aterros ou são incineradas sem que qualquer avaliação mais rigorosa seja feita”, refere o mergulhador.

Na opinião de Miguel Lacerda, “é um ‘crime’ não se aproveitar estes arrojamentos para realizar estudos mais profundos. São uma dádiva dos Oceanos, uma forma de podermos conhecer melhor as espécies sem sermos invasivos, recolher ensinamentos que nos podem levar a chegar a conclusões e maneiras de proceder diferentes. Mas percebo perfeitamente: a grande maioria destas ocorrências não tem horários, dão-se em locais longe da secretária, do computador e cheiram muito mal…”

IDENTIFICAR POSSÍVEIS CAUSAS DE MORTE

Quais poderão ser as causas mais prováveis para a ocorrência destas mortes cada vez mais frequentes de golfinhos? O fundador da Associação Ambiental CascaiSea avança algumas possibilidades: “Sem haver uma avaliação mais aprofundada entramos em suposições… No entanto, é do conhecimento geral de quem mais frequenta o mar da ocorrência de grandes cardumes de sardinha junto à costa, inclusive no rio Tejo. Isto leva a que estes cetáceos os procurem e se aproximem mais do litoral. A partir do momento em que há muitos mais golfinhos juntos a terra, todo e qualquer incidente, quer por morte natural, acidente ou doença, acaba por proporcionar uma ocorrência, coisa que ao largo é mais difícil de acontecer. Quanto mais perto de terra andarem, mais riscos correm devido às artes pesqueiras, sendo que uma parte significativa destes incidentes ficam a dever-se às redes de pesca”.

“Há quem associe a aproximação dos golfinhos a terra a uma melhor salubridade das águas do mar, o que é um erro crasso. Os golfinhos suportam grandes índices de poluição. O que os leva a aproximar a terra tem a ver com o alimento e com comportamentos sociais. O calor faz subir o plâncton e as correntes arrastam-no para junto de terra levando consigo toda uma cadeia alimentar, onde os golfinhos estão inseridos. Actualmente, lidamos ainda com todos os procedimentos de segurança por causa da pandemia, lavagens constantes, uso desmedido de produtos antibacterianos, detergentes, lixivias… tudo venenos que vão afectar a qualidade das águas e muitos ecossistemas, muitos organismos, inclusive o alimento dos golfinhos… Por isso é que são tão importantes as necropsias”, comenta Miguel Lacerda.

A facilidade que existe actualmente de fotografar tudo com um telemóvel e de publicar as imagens imediatamente nas redes sociais tem ajudado a revelar muitos arrojamentos ocorridos. Têm sido frequentes os comentários a apontar o dedo aos pescadores, acusando-os de estarem por detrás de muitas mortes de golfinhos devido aos métodos de pesca utilizados. “Há responsáveis e irresponsáveis por todo o lado, os pescadores não são excepção”, refere o ambientalista. “Até ao Decreto-Lei 263/1981, quando era permitida a captura e comercialização de cetáceos, todo e qualquer golfinho capturado, quer por arpão quer emalhado nas redes, era trazido para terra, levado à lota e comercializado. Hoje, isso não pode acontecer, pois a lei não o permite. Os pescadores quando, por infelicidade, capturam um golfinho nas suas artes de pesca são obrigados a deitarem-no ao mar. Muitos dos arrojamentos que têm ocorrido devem-se exactamente a esta situação, basta ver pelas barbatanas caudais cortadas. Na altura de alar a rede, para não danificarem muito a rede (o golfinho também não passa pelo alador), os pescadores têm este procedimento, até porque normalmente os golfinhos já vêm mortos”, explica.

“Mas também há pescadores que, em artes como a Xávega, têm a noção que fizeram o cerco ao cardume de sardinha junto com golfinhos e para não perderem o pescado arrastam tudo para terra, causando danos enormes aos golfinhos, como tem acontecido no nosso litoral. Há vídeos divulgados nas redes sociais que mostram essa situação. Os golfinhos depois de capturados e arrastados para terra, mesmo que devolvidos ao mar, muitos deles acabam por morrer, quer devido a esmagamento de órgãos internos (estruturalmente não suportam o peso do próprio corpo muito tempo em determinadas posições fora de água), quer pela inalação de água e areia pelo espiráculo (quando arrastados e colocados na zona de arrebentação), quer mesmo pelo stress causado em todo o processo, devido a prisão, aperto, dificuldade em respirar…”

Há algum tipo de medida que possa ser tomada pelas autoridades competentes para tentar reduzir o número de mortes de golfinhos ocorridas na nossa costa? A resposta a esta questão não parece fácil: “Os pescadores estão cada vez mais controlados e limitados, quer no tipo de artes quer nas suas características e dimensões, por isso para os que cumprem começa a ser difícil respeitar mais exigências. No entanto, artes como a Xávega, Chinchorro, Cerco… deviam de ter regras e procedimentos mais adequados e atentos, uma fiscalização mais apertada. Também devia de haver uma maior fiscalização por parte das autoridades de muitas redes que permanecem tempos sem fim no mar a cercar grande parte do nosso litoral, muitas delas sem identificação e cujas malhas não são permitidas”.

E Miguel Lacerda conclui: “Garantidamente, uma pesca mais atenta, mais responsável e sustentável reduzia significativamente muitas das mortes que ocorrem, mas também alguma informação e educação, pois nos dias de hoje ainda há quem pense e afirme que os golfinhos destroem tudo”. 

Do lado dos pescadores, é frontal a recusa às acusações que lhes são dirigidas de serem eventuais responsáveis pelas mortes de muitos golfinhos. “É muito raro acontecer, mas se acontecer os golfinhos ficarem presos das redes, se estiverem vivos, os pescadores tentam safá-los e pô-los de novo a navegar”, garante Manuel Lourigo, Presidente da Associação de Armadores e Pescadores de Cascais, segundo o qual as razões para o aumento do número de arrojamentos registados nos últimos meses devem imputar-se “às alterações climáticas, ao sonar dos barcos, à caça furtiva e caça submarina”. “Os pescadores nada têm a ver com isso, a pesca é através de covos e alcatruzes e redes… nunca se constou que tivesse acontecido”.

ICNF JUSTIFICA A NÃO REALIZAÇÃO DE NECROPSIAS

Contactado o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) sobre os últimos arrojamentos de golfinhos verificados no concelho de Cascais, este organismo público integrado na administração indirecta do Estado, dotado de autonomia administrativa, financeira e património próprio, confirma que “de um modo geral” é informado através da Rede Nacional de Arrojamentos do aparecimento de cetáceos mortos ao longo da costa, acrescentando que “tal aconteceu para os quatro casos descritos em Cascais neste mês de Julho”, sendo que, “dado o estado dos animais, não foram realizadas necropsias”. Ainda segundo o ICNF, “em todos os arrojamentos registados estiveram envolvidas espécies costeiras, razão pela qual não é de excluir a possibilidade de se tratar de capturas acidentais em artes de pesca, situação bastante comum ao longo de toda a costa”. 

Em relação ao procedimento habitual da recolha de animais arrojados, o instituto assinala que “a presença de cetáceos arrojados à costa é comunicada aos serviços das Câmaras Municipais da área de ocorrência, ficando a remoção dos cadáveres a cargo destas entidades”. “O ICNF não tem qualquer interferência nesta remoção”, destaca a instituição pública, precisando que “em condições normais as carcaças têm como destino final os aterros sanitários”. O instituto esclarece ainda que “não existe nenhuma base de dados de acesso público com os resultados das análises/necropsias efectuadas aos animais arrojados” e reforça a ideia de que, “muitas vezes, o adiantado estado de decomposição dos animais não permite a realização de necrópsias ou a recolha de amostras biológicas)”. 

Também a Câmara Municipal de Cascais (CMC) confirma que o procedimento que está estabelecido no caso de arrojamentos de animais no litoral do concelho “é o contacto com o ICNF, que normalmente é feito pela Autoridade Marítima”. De acordo com a autarquia, “as indicações dadas têm sido para recolher e transportar as carcaças dos animais por mar, com os recursos da Autoridade Marítima, para posterior transporte pelos serviços da Cascais Ambiente para incineração”. A CMC precisou ainda que “é o ICNF que determina a necessidade de realizar necropsias aos cetáceos arrojados”, uma opção que não foi tomada nos casos mais recentes ocorridos no concelho.

Autor: Luís Curado

1 comentário em “Há cada vez mais golfinhos mortos na nossa costa

  1. Estava hoje na praia, em Cascais. Triste. Muito triste. A indiferença e a a incúria são perigosas epidemias que assolam hoje , os responsáveis pelas mortes destes seres vivos que tanto nos dão.

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