Carlos Gil: Quinta no Cacém “tem foco terapêutico”

O que era um vale repleto de barracas e construções precárias de génese ilegal, rodeadas por uma lixeira a céu aberto, com graves problemas de salubridade, onde coexistiam também, há décadas, várias questões de índole social por resolver, muitas delas com casos de criminalidade associados, tudo isso agravado pelo risco iminente de incêndio à espera de acontecer, acabou por dar lugar a um projecto de iniciativa privada que se quer diferenciador.

Para muitos “uma utopia difícil de alcançar”, mas para o seu mentor e defensor “um sonho de vida para concretizar”, a Quinta Pedagógica Casal dos Guerreiros, no Cacém, é apresentada como sendo uma Horta Terapêutica, onde o trabalho na terra promove no corpo de quem o pratica a libertação de endorfina, um neurotransmissor responsável pela felicidade e pelo bem-estar, capazes de proporcionar uma melhor qualidade de vida e autoestima.

A ‘oferta’ fica completa com a possibilidade de poder conjugar esta terapia natural, capaz de combater alguns dos sintomas da depressão sem recurso a fármacos, com outros benefícios mais economicistas, nomeadamente a obtenção de alimentos naturais, biológicos e ricos em nutrientes. Isto permite aos hortelãos economizar com a aquisição de produtos hortícolas, promover métodos de cultivo amigos do Ambiente e transmitir esse conhecimento aos demais.

Foto: Paulo Rodrigues

Depois de uma fase de estudo, com muita resiliência à mistura, Carlos Gil apostou forte na concretização do sonho que alimentava há muitos anos. Para ultrapassar um dos principais obstáculos ao desenvolvimento do seu projecto, contou com a ajuda da Junta de Freguesia de Agualva e Mira-Sintra (JFAMS), que, na pessoa do seu presidente, Carlos Miguel Casimiro, apoiou a iniciativa no momento de avançar com os trabalhos de limpeza do lixo e entulho acumulados no terreno da horta.

Actualmente, logo à entrada do recinto, nas paredes de um antigo edifício rural, que se pretende requalificar (pode vir a ser transformado em hotel), deparamos com um enorme cartaz com a imagem de São Francisco de Assis, que recorda aos visitantes a oração do frade católico italiano fundador da Ordem dos Franciscanos: “Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz. Onde houver ódio, que eu leve o amor. Onde houver ofensa, que eu leve o perdão. Onde houver discórdia, que eu leve a união…”

O jornal ‘O Correio da Linha’ visitou a Quinta Pedagógica Casal dos Guerreiros, onde esteve à conversa com o mentor do projecto e com o autarca que assume a presidência da JFAMS desde Outubro de 2013, para ficar a conhecer melhor um projecto que já conseguiu realizar “o milagre” de limpar, de forma pacífica, um “local muito complicado”, que obrigou as autoridades policiais a visitas frequentes para resolver problemas recorrentes que se arrastaram durante décadas.

Foto: Paulo Rodrigues

“TRABALHAR NAS HORTAS AJUDA A COMBATER A DEPRESSÃO”

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Quando foi lançado o projecto ‘Quinta Pedagógica Casal dos Guerreiros’?

Carlos Gil (CG) – Em Março de 2022.

CL – Que área ocupa a Quinta?

CG – 31 mil metros quadrados.

CL – O que o levou a criar este projecto de uma Quinta Terapêutica?

CG – Não sei. Eu acredito que há um mundo que não se vê e é Ele que comanda a vida. Este projecto não foi criado, APARECEU.

CL – Qual a sua profissão? Já tinha alguma experiência relacionada com este tipo de actividade?

CG – Acumulo esta actividade com a gestão de imobiliário e a venda de casas. Tenho cultivado experiências em várias áreas, para além da minha actividade profissional. Essencialmente, o que me motiva é a prática do bem, orientado pela fé e por um desígnio maior.

CL – O que distingue este projecto dos restantes programas de Quintas Comunitárias e Solidárias existentes no País?

CG – São hortas com o objectivo terapêutico e social e não só económico. Está provado cientificamente que a horta pode ser uma grande ajuda no tratamento de problemas de saúde, como o colesterol elevado, osteoporose, depressão, ansiedade, solidão… e contribui, naturalmente, para o aumento da resistência física. Esta quinta contribui, igualmente, para que não haja o chamado ‘Transtorno do Défice de Natureza’.

Esta quinta tem um foco terapêutico. O padrão tem a ver com a alimentação, a parte económica, mais saudável, mas tem o foco da terapia. O que é importante é a estabilidade emocional das pessoas, por isso a razão é mesmo a terapia, uma questão de bem-estar. Depois isso pode ser disfarçado ao contrário, mas a horta existe por uma questão terapêutica. É disfarçada por uma questão monetária, mas sai muito mais barato a qualquer pessoa ir ao supermercado e comprar as coisas do que estar a produzi-las aqui. Na verdade, o contacto com a Natureza é um escape poderoso.

CL – Quantas parcelas de hortas existem nesta Quinta? Ocupadas por quantas pessoas?

CG – Neste momento, existem 61 parcelas. Ocupadas por 61 pessoas.

Foto: Paulo Rodrigues

CL – Quais as origens dos hortelãos?

CG – São de várias origens: portuguesa, cabo-verdiana, guineense, moçambicana, angolana, timorense e santomense.

CL – Sei que a zona de implantação da Quinta estava ocupada anteriormente por habitações precárias de génese ilegal, rodeadas por uma imensa lixeira, que existiam problemas sociais graves e riscos elevados de incêndio. Como foi ter de lidar com todas estas problemáticas para poder lançar o projecto agora em andamento?

CG – Olhando para as pessoas sem julgamento, pois elas estavam a fazer o melhor que sabiam. Depois, foi ensinando/mostrando que havia uma outra maneira de conviver e tratar a Natureza. Com o tempo, a pouco e pouco, as pessoas passaram a colaborar e a querer fazer parte da solução.

CL – Como foram efectuadas as entregas dos talhões?

CG – A comunidade de origem manteve os hortas que cultivava. Depois, os restantes talhões criados foram sendo ocupados/cultivados por pessoas que foram chegando a convite da comunidade de origem. A procura tem sido essencialmente por parte de familiares e amigos dos antigos hortelãos e da comunidade vizinha à Quinta. Neste momento, os novos talhões são cultivados por pessoas que vão sabendo do projecto, através da divulgação. São pessoas que têm necessidade e gosto pelos benefícios que uma horta proporciona.

CL – Durante quanto tempo os talhões ficam na posse da mesma pessoa?

CG – Enquanto a comunidade a aceitar. A Quinta é um espaço para se usufruir em Paz.

CL – Quais são os custos associados ao uso dos talhões?

CG – O metro quadrado da horta tem o custo de 30 cêntimos por mês. Também fornecemos a água para a rega. O enchimento de um bidão de mil litros custa 2,5 euros. O custo de enchimento do bidão de água permite assegurar uma gestão optimizada da água.

Foto: Paulo Rodrigues

SÃ CONVIVÊNCIA E RESPEITO PELO AMBIENTE

CL – Existem regras dentro da Quinta?

CG – Uma boa e sã convivência e o respeito pelo Ambiente. É proibida a utilização de químicos.

CL – Que tipos de Agricultura são aqui praticados?

CG – Agricultura tradicional/familiar, adaptada às técnicas das origens dos hortelãos.

CL – Quais são os produtos que os hortelãos mais costumam produzir nos seus talhões?

CG – Feijão, batatas, couves, alfaces, tomates, piripiri, abóboras, curgetes, cana de açúcar, milho e flores.

CL – Quais são as principais vantagens deste projecto para o proprietário da Quinta?

CG – O proprietário da Quinta tem como vantagens a recuperação ambiental da área; a estabilização da comunidade num ambiente de paz e entreajuda e as bases para colocar de pé o projecto mais ambicioso, que é ter uma actividade sustentável dentro do conceito de uma empresa B Corp. (empresa que desenvolve um modelo de negócio baseado no desenvolvimento social e ambiental, com base num conceito criado nos EUA, em 2006).

Foto: Paulo Rodrigues

CL – De que forma esta Quinta Pedagógica pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população residente na Freguesia?

CG – A população que cuida das hortas é ela própria residente na Freguesia. Para além das famílias que já cá estavam há muitos anos, muitas outras têm-se juntado ao projecto, criando mais hortas ou efectuando trocas de produtos, numa perspectiva de economia local mais sustentável.

Para além das hortas, o exaustivo trabalho de remoção dos resíduos que se foram aqui acumulando, e assegurar que tal prática não se volte a repetir, é um benefício ecológico que ultrapassa os limites da Quinta. O Ambiente é uma questão global que necessita de intervenções locais.

CL – Que tipo de acompanhamento têm os hortelãos?

CG – Os hortelãos contam com o apoio voluntário do engenheiro agrónomo Ricardo Bentes, de forma regular. Sob sua orientação, têm vindo a ser introduzidas técnicas de cultivo mais adequadas ao local, procedeu-se a uma melhor gestão da água e foram introduzidas flores e espécies aromáticas. Os conhecimentos são transmitidos no local com a ajuda de exemplos práticos.

CL – Qual o investimento realizado até ao momento neste projecto?

CG – O investimento já realizado ascende a 250 mil euros.

Foto: Paulo Rodrigues

“COMUNIDADE FOI ‘CONVIDADA’ A PARTICIPAR”

CL – Depois da experiência aqui vivida, desde a aquisição do terreno, que balanço faz da resposta à criação desta Quinta Pedagógica?

CG – O terreno foi adquirido e iniciaram-se de imediato as primeiras interacções com a comunidade local, que cultivava as hortas ou ocupava o terreno de qualquer outra forma. Em primeiro lugar, é importante referir que nada se teria conseguido sem o envolvimento dessas pessoas.

Esta comunidade, que já tinha criado fortes laços com a terra, com o que ela proporciona em termos de alimentação (hortas) e interacção, foi sendo ‘convidada’ a participar em alterações mais amigas do Ambiente, sem que sentisse colocada em causa a sua permanência na Quinta. Afinal, a transformação que se tem feito não seria possível sem a participação desta comunidade.

CL – Que tipo de apoio tem dado/dá a Junta de Freguesia de Agualva e Mira-Sintra à manutenção deste projecto?

CG – A Junta de Freguesia (JF) tem sido uma aliada muito importante. As diligências para a remoção de grande parte dos resíduos, transportados para vazadouros adequados, foram uma grande ajuda. A JF colaborou também na divulgação junto dos moradores vizinhos de acções de limpeza em prol de um bem comum. O presidente Carlos Casimiro conhece muito bem a realidade desta quinta e o seu histórico mais problemático, que felizmente já não fazem parte dos dias de hoje.

CL – E a Câmara Municipal de Sintra (CMS)? Gostaria de poder contar com outro tipo de apoios para o projecto da Quinta?

CG – Gostaríamos que este projecto fosse do conhecimento do Sr. Presidente da CMS e dos vereadores com pelouros nas esferas do Ambiente, Acção Social e Urbanismo, para podermos encetar diálogos no sentido de potenciar ainda mais as condições existentes na Quinta. Com esse apoio da Autarquia teríamos uma junção de esforços, de forma consistente e em prol do bem do município, alavancando este projecto para poder ir muito mais longe, em prol do Ambiente e da comunidade local, tornando-o sustentável.

CL – É possível que esta Quinta Pedagógica possa evoluir para outro patamar? Sei que está a ser preparado um estudo para ser apresentado a uma entidade bancária para conseguir financiamento para realizar outras fases do projecto?

CG – O propósito deste investimento tem de passar pela sustentabilidade do projecto nas suas três vertentes (social, ambiental e económica) e, eventualmente, sermos uma empresa B Corp. Acreditamos que os negócios devem ser colocados ao serviço do bem, contribuindo para um Mundo melhor.

Sonhamos também manter esta zona com uma identidade florestal, tal como se encontra previsto no Plano Director, aperfeiçoando as hortas comunitárias como eixo identitário da comunidade e procurar reabilitar a velha construção da Quinta, actualmente em estado de ruína. Esta reabilitação poderia oferecer, neste enquadramento, uma solução para Turismo Rural que seria o vector económico para fechar o ciclo e assegurar a sustentabilidade do projecto.

CL – Quais são as próximas etapas na concretização do projecto da Quinta?

CG – A Quinta já existe e o caminho a percorrer é cheio de desafios. A curto prazo, temos como prioridades o contacto com a Câmara Municipal e com uma entidade bancária para balizarmos o investimento mais adequado.

Foto: Paulo Rodrigues

“EXISTIAM AQUI TONELADAS DE RESÍDUOS PERIGOSOS”

Na presidência do executivo da Junta de Freguesia de Agualva e Mira-Sintra (JFAMS) há 10 anos, Carlos Miguel Casimiro foi, desde o início, um apoiante da Quinta Pedagógica Casal dos Guerreiros, um projecto de iniciativa privada que viu com bons olhos, até porque veio resolver problemas graves já referenciados. “Existiam aqui toneladas de lixo e de resíduos perigosos que tiveram de ser retirados. Saíram daqui muitos camiões carregados, sobretudo com resíduos de obras”, assinala.

“As pessoas iam trazendo para aqui os mais variados materiais com os quais iam criando construções abarracadas. Havia aqui muito entulho, paredes de madeira, chapas de zinco, bidões de plástico, muita coisa que ia sendo acumulada. E, sendo construções precárias, com um tempo de vida curto, quando se estragava qualquer material era mais fácil não reparar e trazer mais. Isso levou a que fosse acumulado aqui imenso lixo”, explica o autarca.  

“Eu vi este projecto com bons olhos, porque passava por aqui, conhecia o local. A Junta foi alertada, várias vezes, particularmente por risco de incêndio. A mancha de eucaliptos era muito densa e o risco de ocorrer um incêndio de grandes proporções era tremendo. Era um barril de pólvora. E com as pessoas, sem quaisquer condições, que aqui estavam, eu estava muito preocupado. Ainda para mais com acessos complicados”, justifica Carlos Casimiro.

“Quando o projecto apareceu, pensei em ajudar. A ideia era um bocadinho sonhadora, ainda tive algumas dúvidas, mas vi o Sr. Carlos Gil muito empenhado e mostrei disponibilidade para ajudar a retirar as muitíssimas dezenas de toneladas de resíduos que aqui existiam. Os SMAS foram exemplares nesta matéria. Os resíduos de amianto eram imensos. Os camiões de Junta de Freguesia e dos SMAS saíam daqui carregados de lixo e entulho”, recorda o presidente da JFAMS.

NOVA HORTA COMUNITÁRIA NA FREGUESIA

De acordo com informação avançada por Carlos Casimiro, a Junta de Freguesia de Agualva e Mira-Sintra (JFAMS) vai poder contar com uma nova horta comunitária, promovida pela autarquia sintrense, cuja criação está prevista nos projectos seleccionados para serem apoiados ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) português.

“Vai ser constituída uma horta comunitária em Mira-Sintra em terrenos municipais, perto da A16, junto ao Parque Urbano de Mira-Sintra. Esses terrenos estavam ocupados por hortas clandestinas, há muitas dezenas de anos, pelo que foi necessária a decisão de libertar os terrenos para poder construir as hortas comunitárias”, revelou o autarca.

“No caso da futura horta comunitária de Mira-Sintra, a limpeza dos terrenos já está feita e o projecto vai mesmo avançar. O espaço destinado à sua implantação foi identificado pela Junta de Freguesia, apresentámos um estudo prévio à CMS, e na sequência disso o projecto foi inscrito nas verbas do PRR.

Segundo o presidente da JFAMS, o Município sintrense já avançou com a demolição de muitos muros e construções abarracadas clandestinas existentes no local escolhido para a criação da futura horta. “Até para permitir fazer um levantamento topográfico com rigor, o que não era possível até à data”, referiu.

“A limpeza dos terrenos já foi feita, o levantamento topográfico está a ser realizado. Vai agora avançar-se, é essa a minha expectativa, com a adaptação do projecto que nós apresentámos à realidade do terreno”, explicou Carlos Casimiro, arquitecto de formação, eleito para a presidência da JFAMS pelo Partido Socialista.

Autor: Luís Curado

3 comentários em “Carlos Gil: Quinta no Cacém “tem foco terapêutico”

  1. Moro próximo dessa quinta, no cimo da Rua Mira Sintra foram colocadas umas tábuas a tapar a entrada para lá, mas está tão feio e com tão mau aspecto, não seria possível dar ali um jeitinho?

    1. Gratos pela sua mensagem. Recebemos do responsável pelo projecto a seguinte resposta: Em primeiro quero agradecer a ajuda e informar que nesta semana já vamos dar um jeitinho para ficar mais bonito.

  2. Fascinante projeto Carlos!…

    Sempre te conheci como sendo um empreendedor.
    O teres dado asas a este enorme projeto de sonho é sem duvida uma façanha que demonstra o bem que há em ti.
    O Turismo Rural precisa ser encarado como um futuro alicerce na continuidade deste projeto.

    Gostei da reportagem, muito informativa.

    Desejo que as entidades bancárias, os responsáveis pelas Câmaras Municipais ou investidores financeiros, possam vir a cavar fundo juntamente contigo amigo Carlos.

    Parabéns a todos os envolvidos!

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