Memórias de uma vila que alimenta paixões

Cascais é uma vila com um passado rico, recheado com muitas histórias para contar. Por aqui passaram reis destituídos, príncipes exilados, artistas mal-amados, refugiados fugidos da guerra, escritores incómodos, espiões ousados e sempre muita, muita gente do jet-set… Também o património arquitectónico revela aspectos fascinantes, dados históricos que merecem ser revelados. Em alguns casos a imaginação sobe de tom com a criação de lendas, superstições assustadoras, relatos de fantasmas perdidos no tempo, estórias que têm conquistado espíritos curiosos. 

‘Histórias da História de Cascais – H2C’ é uma página do Facebook criada em Julho de 2017 em resultado de um hobby desenvolvido por Rui Pais de Amaral ao longo dos últimos anos que depressa conquistou um universo fiel de seguidores, actualmente mais de 10.500. O seu autor, um arquitecto de 58 anos natural de Mangualde, tem dado a conhecer informações valiosas relacionadas com a História de Cascais. Diariamente, alimenta a sua página com publicações cujo conteúdo tem merecido a atenção dos internautas. O que o levou a avançar com esta iniciativa?

“Ao longo dos anos tenho tido o privilégio de ir ouvindo histórias das vivências de Cascais, nas tertúlias com cascalenses de gema, jovens octogenários, que, de uma forma divertida, recordam o passado comentando e criticando as situações por que passaram. Em comum têm todos a boa-disposição e o amor por Cascais. Por motivos profissionais também tive que efectuar muitas pesquisas históricas para perceber e enquadrar algumas intervenções urbanísticas do concelho”, começa por explicar este arquitecto de formação licenciado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa.

“Esta necessidade de obter informações sobre tantos assuntos fez com que fosse recolhendo apontamentos e notas sobre a História de Cascais, encontrando, de quando em vez, episódios que não se ajustavam, com rigor, nas datas reportadas e/ou com os personagens evocados. A riqueza bibliográfica existente permitiu desfazer muitas dúvidas e comecei a comentar com amigos e colegas várias histórias da História de Cascais. Rapidamente começaram os desafios para publicar um livro ou um blog, mas, não sendo historiador, preferi começar a publicar algumas histórias no Facebook. Trata-se, por conseguinte, meramente da publicação no Facebook de um hobby pessoal”, acaba por esclarecer.

O JUDEU, O MARQUÊS E OS FIGOS

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Quais foram as histórias que obtiveram mais visualizações?

Rui Pais de Amaral (RPA) – As histórias que têm mais visualizações são, sem dúvida, as que, pertencendo ao passado, têm recordações de situações vividas na primeira pessoa. Refiro-me, por exemplo, a publicações sobre o Coconuts, o Hotel Estoril-Sol, o Santini, a Casa das Pedras na Marginal, a Maternidade do Monte Estoril, etc..

CL – Qual foi a história mais estranha que já divulgou na sua página?

RPA – A história mais estranha que li e publiquei passa-se na primeira metade do século XVII. Refere-se a um rico judeu que aqui residia e que ofereceu figos ao Marquês de Cascais (a D. Luís ou eventualmente a seu pai) numa bandeja de ouro. O Marquês espantava-se com o odor diferente daqueles figos que realçavam o seu excelente sabor.  O Judeu, no entanto, não perdera o rancor aos portugueses que desde D. Manuel haviam perseguido os seguidores de Israel. Assim, logo nos primeiros figos que enviou, passou-os primeiro pelo “imundo ilhó da rabadilha”. Como o Marquês elogiara o tal odor, o judeu nunca mais parou aquela prática.

Entretanto, por outros motivos desconhecidos, o Judeu acabou preso pela Inquisição. O Marquês de Cascais preparava-se para testemunhar a favor do vizinho quando um dos seus criados, também preso, divulgou a estranha história. Tendo o Judeu sido condenado à fogueira, como era costume na época, o Marquês de Cascais acompanhou o rei ao auto de fé. Na igreja de São Domingos, em Lisboa, o Marquês, que não cria na história, perguntou-lhe se a mesma era verdadeira. O Judeu, fiel à sua fé, confirmou alto e bom som a veracidade da história.

A partir deste episódio a expressão ‘Figos de Cascais’ entrou no léxico português, querendo referir o travo da ironia envenenando a doçura de uma gentileza. Esta expressão perdeu-se, no entanto, no tempo.

CL – Com que apoios conta?

RPA – Nenhuns. Trata-se meramente de um hobby pessoal que decidi partilhar.

CL – Qual foi a história que mais trabalho deu divulgar?

RPA – Todas as histórias têm trabalho que as precedem. Todas as publicações, referentes a edifícios mais ou menos antigos ou pedaços de história do concelho, são sempre resultado de estudo e todos são comprovados por bibliografia. O trabalho consiste também em sintetizar o mais possível cada história para que não seja fastidiosa a sua leitura. Impus a mim próprio que nenhuma história ultrapassasse os 300 carateres e serão muito poucas as que excederam este número.

Acresce que muitas das fotografias são também minhas o que aumenta o tempo que dedico a cada publicação. Também procuro responder a todos os que colocam questões, quer publicamente quer através de mensagens privadas. Naturalmente muitas das questões que são colocadas implicam novas pesquisas.

CL – Quais são as fontes que costuma usar para recolher elementos para as suas histórias?

RPA – As fontes são quase exclusivamente bibliográficas, que posso divulgar sempre que mo solicitem. Não o faço em cada publicação só para não se tornar fastidioso. Mas claro que estou atento a todos os media, blogs e outras páginas de redes sociais. Neste último caso normalmente servem para me aguçar o apetite de pesquisa e só depois disso publico.

CL – Quantas pessoas colaboram no projecto?

RPA – Como já referi trata-se de um hobby pessoal e, por conseguinte, sou só eu.

INCENTIVOS E PEDIDOS DE AMIZADE

CL – Quando foi criada a página no Facebook?

RPA – Comecei a publicar na minha página pessoal em Fevereiro de 2017, mas comecei a receber tantos incentivos e pedidos de amizade de pessoas que não conhecia que decidi criar uma página específica para estas publicações. A página ‘H2C-Histórias da História de Cascais’ nasceu em 16 julho de 2017.

CL – A receptividade ao projecto tem sido boa?

RPA – Actualmente tem mais de 10.500 seguidores o que, tendo em conta que se trata de uma página com um tema muito limitado geograficamente, e que o universo dos cascalenses é de 120 mil pessoas, considero muito lisonjeador.

CL – Cascais está na moda?

RPA – Portugal está na moda. Mas os conteúdos desta página nada têm a ver com essa realidade. Os inúmeros comentários diários que recebo (e que leio) indiciam que os interessados são pessoas que aqui vivem, portugueses e estrangeiros. Não são turistas. Também há pessoas que já aqui viveram e seguem a página por nostalgia.

CL – Qual a história que mais gostaria de contar sobre Cascais?

RPA – Não tenho limite. A página vive também de imagens (uma fotografia diária com um pedaço de história de Cascais) e por isso, se é fotografável e tem história, se considerar interessante, publicarei. As mais curiosas têm sido aquelas em que relato a história de um imóvel e aparecem vários comentários de pessoas a contarem as suas peripécias naquele lugar. Ou quando publico uma fotografia antiga e alguém reconhece a mãe na mesma e partilha o contexto da fotografia, por exemplo.

CL – Qual a história que menos gostaria de contar sobre Cascais?

RPA – Como já referi, não tenho limites. Naturalmente não publico acontecimentos recentes para que não hajam conotações sejam de que espécie forem. Reconheço uma exceção: fiz uma publicação sobre a inauguração da Universidade Nova, mas essa, indubitavelmente já faz parte da nossa História. E retiro da página comentários ofensivos ou partidários embora não haja muitos, felizmente.

CL – Cascais tem muitas histórias para contar?

RPA – Claro que sim. A História de Cascais é riquíssima pelo que não faltam motivos. Publico diariamente há já três anos e não são muitas as histórias repetidas. E mesmo essas, geralmente são enriquecidas com informações novas que muitas vezes me são indicadas pelos fantásticos comentários dos seguidores.

APAIXONADO POR CASCAIS 

CL – Quem é o mentor da página ‘Histórias da História de Cascais – H2C’? 

RPA – É um apaixonado por Cascais, leitor compulsivo de obras que versem Cascais (e não só), e não prescindo de uma vida social intensa nem dos meus passeios de bicicleta e de jogos de Padel.

CL – O que mais gosta em Cascais?

– Cascais é uma vila fantástica. Tenho o enorme privilégio de aqui viver e trabalhar, o que me confere uma qualidade de vida imensa. Para ir trabalhar passo todos os dias na baía de Cascais e aquela paisagem, luz, cheiros, pessoas com quem me cruzo, são realidades que me transmitem uma energia e me provocam um sentimento de enorme satisfação.

É deveras interessante que Cascais seja uma terra muito cosmopolita (li que aqui residem representantes de mais de 180 países) e, simultaneamente com uma noção de comunidade muito intrínseca. O sucesso da página H2C é disso prova inequívoca. Uma comunidade coesa conhece as suas raízes e a sua História, e eu tenho a prova que os cascalenses conhecem e querem conhecer a sua História. É curioso receber comentários em línguas que não conheço (o tradutor instantâneo é fantástico).

CL – O que gosta menos em Cascais?

RPA – Posso afirmar que conheço bem o concelho e temos zonas menos favorecidas fruto de políticas de época que nem sempre foram correctas. Mas, sendo realista, não encontro qualquer concelho em Portugal que objectivamente possa afirmar que é melhor que Cascais, em nenhum sector.

CL – O que gostaria que fosse feito em Cascais?

RPA – Cascais tem vindo a apostar muito na juventude, estratégia com a qual estou completamente de acordo. Em 2018 fomos a Capital Europeia da Juventude. A vinda de unidades de ensino superior ajuda a combater o envelhecimento da população, com sangue novo que nos trará novas ideias e novas vivências.

‘CASCAIS TEM UM PASSADO MUITO RICO’

CL – O que gostaria que Cascais viesse a ser no futuro? Cascais tem futuro?

RPA – Cascais tem um passado muito rico que aponta certamente para um futuro notável. A qualidade de vida é inquestionável, o que tem trazido gente de todo o Mundo, e o concelho tem sabido recebê-los com tolerância e sem colocar a nossa História e identidade em risco. Cascais tem-se igualmente mantido na vanguarda da inovação tecnológica a vários níveis, assegurando o seu lugar no futuro.

CL – Há algo em Cascais que já tenha desaparecido e de que sinta saudades?

RPA – Não sou um saudosista. Tenho consciência que a evolução condena algumas vivências, e marcos históricos, mas é necessária e importante. Se assim não fosse ainda seríamos uma aldeia piscatória na dependência de Sintra.

CL – Cascais é diferente? Tem particularidades únicas?

RPA – Claro que sim. A sua localização geográfica foi, desde sempre, primordial para que todos olhassem para Cascais com olhos diferentes. Temos um clima mais ameno que Lisboa e uma quantidade de horas de sol superior a Sintra. Sempre fomos o último local onde os barcos se abasteciam e o primeiro a dar abrigo aos que chegavam. Um local onde diversas culturas se encontram há vários séculos e temos sabido tirar partido dessa circunstância.

CL – Se tivesse de pensar num desejo para Cascais, qual seria?

RPA – O maior desejo é que continue a apostar na tolerância. Neste Mundo global em que vivemos é uma das nossas maiores riquezas.

CL – O que poderemos esperar da página ‘Histórias da História de Cascais – H2C’?

RPA – Enquanto tiver histórias novas, vou continuando a divulgar. Vou continuar a publicar histórias e a desafiar os cascalenses a enriquecê-las partilhando as suas. Tenho recebido desafios para publicar um livro. Um dia, quem sabe?

Autor: Luís Curado

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