Andreia Alves: “Iniciámos a nossa intervenção com uma equipa técnica de rua”

Desde 2022 que o município da Amadora conta com o apoio da Associação Crescer para assegurar a redução de riscos e a minimização de danos entre as populações vulneráveis do concelho. Inicialmente focada na prevenção de consumo de substâncias psicoativas entre crianças e jovens, a Crescer expandiu as suas ações para oferecer um apoio mais abrangente a pessoas em situação de vulnerabilidade social, especialmente aquelas que enfrentam o consumo de substâncias psicoativas e a falta de habitação. Numa conversa com Andreia Alves, coordenadora de projetos da associação, o Correio da Linha explorou o percurso de trabalho da instituição. 

O Correio da Linha (CL) – Como surgiu a Associação Crescer?

Andreia Alves (AA) – Em 2001, aqueles que seriam os 5 fundadores da Crescer, estavam a iniciar o seu percurso profissional na área da psicologia, numa outra associação que trabalhava com pessoas com consumos de substâncias psicoativas, como a heroína e a cocaína. Nesse momento estava a ocorrer o desmantelamento e a reconstrução da zona do Casal Ventoso. Assim, nesse ano, esses 5 colegas criaram um projeto que visava principalmente a prevenção e incidia sobre crianças e jovens. Esta iniciativa durou até 2004, sendo que, simultaneamente, exploraram uma nova área que começara a dar alguns passos em Portugal, fruto de alterações legislativas significativas em 2000 e 2001: a redução de riscos e a minimização de danos de consumo. Surge então a Crescer. Progressivamente o foco deixou de ser a intervenção junto de crianças e jovens, passando a sua ação a incidir sobre pessoas que tinham consumo de substâncias psicoativas à data. O objetivo consistia na redução dos riscos e dos danos do consumo, fornecendo apoio psicológico, social e de enfermagem, através de uma série de respostas como equipas técnicas de rua, programas de troca de seringas, etc. 

Há medida que os anos foram passando, os membros da associação foram conhecendo melhor a sua população-alvo e aperceberam-se da existência de outras necessidades. Assim surgiram projetos na área da habitação, como o Housing First, que oferece casas individuais a pessoas em situação de sem-abrigo e criaram-se também propostas ao nível da empregabilidade. A título de exemplo, temos restaurantes abertos ao público, em que todas as pessoas que lá trabalham já estiveram em situação de sem abrigo. 

CL – Como é que a Crescer chegou ao concelho da Amadora?

AA – Em janeiro de 2022, por solicitação da Câmara Municipal da Amadora (CMA) iniciámos a nossa intervenção no município, especificamente na freguesia das Águas Livres, com uma equipa técnica de rua. Esta é uma freguesia com vários bairros em que existe tráfico e consumo de substâncias psicoativas. Entretanto, desde setembro de 2023, expandimos a nossa área de intervenção às restantes freguesias do concelho.

VARIEDADE DE RESPOSTAS

CL – Que tipo de apoios prestam à população?

AA- Iniciámos a nossa intervenção na Amadora com uma equipa técnica de rua e desde setembro de 2023, estamos a dinamizar o Espaço Ímpar. Este é um local aberto à população em situação de sem-abrigo, que visa ser uma porta de entrada para que as pessoas possam começar a organizar algumas esferas da sua vida. 

Oferecemos apoios de primeira linha, como o acesso ao duche, a produtos de higiene, acesso à internet. Dispomos de uma zona de rouparia e lavandaria e proporcionamos pequeno almoço, almoço e lanche. Além disso, no espaço contamos com a presença de uma assistente social e de uma psicóloga que estão disponíveis para falar com quem ali se dirige. O Espaço Ímpar conta ainda com um elemento fundamental ao qual damos o nome de “par”. Esta é uma pessoa que já esteve em situação de sem-abrigo, ou que já teve consumos de substâncias psicoativas, e que funciona como um mediador, facilitando a comunicação com a população alvo. 

Além destes profissionais contamos com o apoio de uma enfermeira – que infelizmente não está no espaço a tempo inteiro – sendo, portanto, possível fazer curativos, realizar a vacinação e proporcionar rastreios de hepatite C, HIV, sífilis e hepatite B. 

Através de protocolos com outras entidades, procuramos dinamizar o espaço, indo além daquelas que são as nossas valências. Por exemplo, o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) já foi várias vezes fazer ações de sensibilização e de formação ao espaço e Centro de Diagnóstico Pneumológico já ali realizou vários rastreios. O objetivo é que através das atividades que vamos proporcionado, consigamos unir a população que se desloca até àquele local. O Espaço Ímpar funciona durante os dias úteis das 9h00 às 17h00. 

CL – No que respeita à equipa técnica de rua, como funciona?

AA- Tal como mencionei, atualmente esta equipa já percorre as 6 freguesias do concelho da Amadora. A nossa equipa é composta por um psicólogo, uma assistente social, uma enfermeira e um par, que vão de carro até aos locais em que as pessoas estão a pernoitar ou a consumir, procurando dar resposta às suas necessidades. Estas podem ir desde o tratamento de uma ferida, ao apoio na realização do cartão de cidadão, etc. Muitas das vezes para dar resposta é necessário articularmo-nos com outros serviços, como é o caso das inscrições no centro de saúde, ou as idas ao hospital. Responsabilizamo-nos por fazer todas as articulações necessárias de forma a facilitar o acesso destas pessoas aos serviços sociais e de saúde. A equipa de rua funciona todos os dias úteis das 14h00 às 18h00, sendo que à terça alargamos o horário até às 22h00, para tentarmos alcançar mais pessoas. 

CL – Como é que as pessoas chegam até vocês?

AA – A maioria das pessoas que apoiamos é identificada através das observações que fazemos na  rua. Há também uma parte significativa dos casos que nos é encaminhada pela autarquia. Sempre que um munícipe faz uma comunicação, seja para a Câmara ou para uma Junta de Freguesia, o caso entra num circuito, acabando por chegar até nós. Procuramos responder a estas sinalizações entre 24 a 48 horas após o seu recebimento. A equipa técnica de rua tem rotas pré-definidas, mas deixamos sempre algum tempo livre para atender estes casos. Quando recebemos uma sinalização, passamos pelo local indicado e iniciamos a intervenção assim que encontramos a pessoa. Se encontrarmos apenas vestígios de pernoita, voltamos em horários diferentes. Daí que, como mencionei, também façamos rondas no período noturno, pois muitas vezes, ao visitarmos o local às 15h, as pessoas não estão lá. Já às 22h, é mais provável encontrarmos aqueles que pernoitam na rua.

CL – Quantas pessoas apoiam?

AA – Relativamente à equipa de rua, ao longo do ano de 2023 acompanhámos 182 pessoas. No que concerne ao Espaço Ímpar, como só entrou em funcionamento em setembro do ano passado, os dados disponíveis respeitam apenas ao período que vai desde a sua abertura até dezembro, sendo que contámos com 111 utentes. É de ressalvar que algumas destas pessoas recorrem a ambos os serviços, pelo que no total apoiámos 244 pessoas. 

“A PRIORIDADE É ESTABELECER UMA RELAÇÃO DE CONFIANÇA”

CL – Qual a vossa metodologia?

AA – A nossa metodologia baseia-se na redução de riscos e minimização de danos, entendendo que grandes passos só são possíveis com uma relação sólida com as pessoas. Com isto em mente fazemos, por exemplo, a distribuição de materiais como seringas, cachimbos, preservativos e água, com dois objetivos: reduzir infeções de HIV e hepatite C, o que tem um impacto direto na saúde pública, prevenindo a difusão destas doenças que podem ser passadas com a partilha daquele material; e criar uma relação de confiança com as pessoas…inicialmente, as pessoas podem pedir apenas uma seringa, mas com o tempo, as conversas tornam-se mais profundas, levando-as a revelar seus desejos e necessidades.

Muitas pessoas estão descrentes das opções disponíveis ao nível da habitação, como albergues, onde são frequentes experiências negativas – como violência – levando-as a preferir pernoitar na rua. No entanto, não ouvimos pessoas a dizer que querem ficar na rua; elas querem sair, mas as vagas disponíveis não atendem às suas necessidades. Infelizmente existem poucas vagas disponíveis de alojamento e a maior parte delas são efetivamente respostas coletivas, como os albergues e os centros de acolhimento, que pela quantidade de gente que reúnem acabam por não ser a resposta mais adequada. 

Por isso, criamos o projeto Housing First, que já tirou mais de 140 pessoas da rua em Lisboa, oferecendo habitações individuais. A adesão é alta e raramente alguém retorna à rua. A médio e longo prazo, a nossa abordagem pode efetivamente ajudar na saída da rua, mas a curto prazo, o sistema não oferece vagas suficientes adequadas às necessidades diárias destas pessoas. Além disso, elas precisam de fazer um longo percurso para sair da rua, o que inclui fazer formação e arranjar trabalho, antes mesmo de conseguirem ter rendimento para alugar um quarto. Por isso, pressionamos as entidades responsáveis para criar mais vagas e adaptar os projetos existentes para respostas menores e mais individuais, atendendo melhor às necessidades das pessoas.

CL – Como é a vossa abordagem a estas pessoas que se encontram em situação de fragilidade?

AA – A nossa abordagem visa ser o mais informal e horizontal possível. Apresentamo-nos, mas não insistimos em formalidades como ser tratados por “você” ou “doutora”. Usamos coletes e carros identificados e quando chegamos aos locais habituais, mesmo que encontremos pessoas novas, a abordagem é facilitada pelo facto de já sermos conhecidos por muitos. 

O nosso principal objetivo é conhecer a pessoa e sua história, não impondo o que ela deve fazer, mas ouvindo o que ela deseja. Muitas vezes, a intervenção começa com conversas triviais, sobre futebol ou o tempo, para deixar a pessoa à vontade e criar uma relação de confiança. A partir daqui tudo se constrói. Aos poucos vamos compreendendo e trabalhando os objetivos específicos de cada um. Lembro-me de uma situação em que uma pessoa estava preocupada em fazer análises clínicas para monitorizar a carga viral de HIV e hepatite C, e nós providenciámos isso. Para outras pessoas, a preocupação passa por arranjar trabalho, então vão muitas vezes ao Espaço Ímpar enviar currículos. Mas isto são questões que elas próprias levantam, não somos nós que impomos o que devem ou não fazer. É a pessoa que nos traz o seu objetivo. Para respondermos a estas necessidades integramos o Núcleo de Planeamento e Intervenção com pessoas em Situação de Sem Abrigo (NPISA) – neste caso da Amadora – que reúne parceiros na área da saúde, da ação social e da empregabilidade, que é dinamizado pela autarquia. Esta colaboração permite-nos adaptar os serviços às necessidades da nossa população-alvo, como ajustar horários de consultas médicas ou levar o médico até a rua. 

NECESSIDADES QUE PRECISAM DE SER ATENDIDAS

CL – No que concerne ao concelho da Amadora quais os vossos objetivos para o futuro?

AA – O nosso grande objetivo a curto prazo é ampliar o horário da equipa de rua e aumentar o número de profissionais no nosso espaço. Atualmente, temos apenas quatro profissionais divididos entre o espaço e rua, o que é insuficiente para atender aos dois projetos. Portanto, precisamos de aumentar rapidamente a capacidade de resposta em ambas as iniciativas 

Além disso, precisamos de criar soluções que atendam às necessidades específicas da população. Por exemplo, sentimos uma grande necessidade de uma sala de consumo assistido no concelho. O nosso espaço atual não oferece essa estrutura, e os consumos continuam a ser realizados ao ar livre, enfrentando todos os problemas decorrentes dessa situação, como seringas abandonadas, overdoses e a exposição pública ao consumo.

Uma sala de consumo assistido poderia resolver muitos destes problemas, oferecendo um ambiente seguro e controlado. As pessoas teriam acesso a material limpo, reduzindo o descarte inadequado de seringas. O consumo deixaria de ocorrer na via pública, protegendo tanto os consumidores quanto os transeuntes – especialmente as crianças – de presenciar cenas de uso de drogas. Além disso, haveria suporte imediato em casos de overdose, potencialmente salvando vidas.

A médio prazo, o nosso objetivo passa por consolidar e fortalecer os recursos das respostas já existentes, além de criar soluções habitacionais, que são extremamente necessárias na Amadora. A falta de habitação adequada é um problema crítico que precisa ser abordado com urgência. Daí que queiramos expandir o programa Housing First de Lisboa para a Amadora.

CL – A autarquia já foi abordada no sentido no sentido de atender a estas necessidades?

AA – Sim, há um ou dois anos, a CMA realizou um diagnóstico na área das dependências, em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública. Esse diagnóstico revelou a necessidade de aumentar as respostas relacionadas ao consumo de substâncias psicoativas, incluindo a criação de uma sala de consumo assistido, o reforço das respostas já existentes e o desenvolvimento de soluções habitacionais, como o programa Housing First e centros de acolhimento.

Sabemos que a CMA tem isto em mente e está comprometida em gerir os recursos públicos para investir nesta área. Realizamos reuniões mensais e estabelecemos contato semanal – e até diário quando necessário – com a autarquia para discutir e acompanhar tudo o que se passa em relação a esta população.

CL – Em setembro têm programado um festival gastronómico no concelho. Em que consiste?

AA – A convite da CMA iremos dinamizar este festival gastronómico, denominado “É um Encontro”, que terá lugar entre os dias 13 e 15 de setembro. Este festival visa promover a integração através do diálogo intercultural, destacando a diversidade gastronómica do município da Amadora, incentivando a troca de ideias. Com um forte envolvimento comunitário, o evento promove a participação ativa dos atores locais em diversas atividades, facilitando a partilha de histórias e tradições e construindo pontes entre diferentes comunidades. Com efeito, é do conhecimento geral que a Amadora reúne várias nacionalidades e culturas que convivem entre elas e que, de forma não organizada e informal, há pessoas que vão vendendo os pratos típicos do seu país. O objetivo é trazer organização e sustentabilidade a estes pequenos negócios que as pessoas já vão fazendo. 

O festival contará com a presença de chefs de renome como Nuno Bergonse, para compartilhar experiências e reinventar pratos tradicionais das comunidades representadas. Quem ali se dirigir encontrará showcookings, venda de produtos do mundo, street food, espetáculos e exposições culturais, debates, apresentações e atividades para crianças.

TODAS AS AJUDAS SÃO IMPORTANTES

CL –Com que apoios contam para levar a cabo as vossas atividades?

AA – A CMA é o nosso único financiador na Amadora. Contudo, contamos com uma rede de parceiros como o IEFP, os Centros de Saúde, etc. É de destacar o apoio semanal do Pingo Doce da Amadora, que nos doa sobretudo alimentos. Estes são essenciais para a confeção das refeições servidas diariamente no nosso espaço. As refeições são preparadas num dos nossos restaurantes, o “É uma Mesa”, localizado no Bairro Padre Cruz, onde trabalham exclusivamente pessoas que já estiveram em situação de sem-abrigo – algumas das quais provenientes do concelho da Amadora. 

Também temos uma parceria com o IKEA, que remodelou quatro salas do nosso espaço, nomeadamente dois gabinetes, a sala de estar dos utentes e a rouparia.

CL – Como é que a população pode apoiar a associação?

AA – Doações de roupas, produtos de higiene pessoal e produtos de limpeza para o Espaço Ímpar são sempre bem-vindas. Estas doações podem ser feitas no Espaço Ímpar, na Praça José Cardoso Pires, 1, Amadora.

Outra forma de ajudar é através do voluntariado. Já tivemos voluntários que desenvolveram projetos de pedicure, manicure, cabeleireiro, massagens, e recentemente, projetos de escrita criativa e fotografia com os nossos utentes. Estas iniciativas foram organizadas por pessoas a título individual ou grupos de estudantes universitários que voluntariamente quiseram contribuir para o nosso projeto. Antes de implementarmos estas atividade avaliamos o interesse dos nossos beneficiários em participar nelas, mas o nosso objetivo é manter o espaço aberto para receber os diversos talentos da comunidade que possam envolver e beneficiar a nossa população alvo. 

NOTA: Artigo escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

Autor: Raquel Luís

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.