Ana Camilo: “A Pintura proporciona uma viagem única”

Ana Camilo sempre respirou Arte. Desde muito cedo, deu largas à sua criatividade, experimentou técnicas diferentes, procurou uma identidade própria. Com apenas oito anos, já pintava e expunha os seus trabalhos. A Pintura surgiu como uma forma de expressão em que navega com o à-vontade que caracteriza a sua chama de artista. Permanentemente insatisfeita, em busca de uma nova experiência, de uma nova viagem, cuja influência possa conseguir transmitir a quem contempla as suas obras. Sempre como um ponto de partida e nunca como um porto de chegada.

As suas primeiras incursões no mundo artístico começaram com a aguarela, que depois deixou de lado, em suspenso, para se lançar na aventura de experimentar outras técnicas. Ainda hoje, tem o projecto de regressar um dia à técnica com que deu os primeiros passos. Entretanto, passou também pelas artes decorativas, antes de apostar no Desenho e na Pintura a Óleo. Mais recentemente, desenvolveu um novo projecto que mistura a Cianotipia (processo de impressão fotográfica em tons azuis que produz uma imagem em ciano), a Pintura a Óleo e o desenho a tinta-da-china.

Foi o resultado desta experiência que serviu de base à sua mais recente exposição individual, patente ao público, até 30 de Dezembro, na Biblioteca Municipal de São Domingos de Rana, no concelho de Cascais, sob a denominação ‘Blues Me #2’, inspirada nos seus diários de viagens. O jornal ‘O Correio da Linha’ foi conhecer melhor este e outros projectos da artista residente em Cascais, licenciada em Conservação e Restauro, pelo Instituto Politécnico de Tomar, e com um Mestrado em Museologia e Museografia, pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Como nasceu o gosto pela Arte? Quando começou a realizar as suas primeiras obras?

Ana Camilo (AC) – Desde sempre me lembro de ter fascínio pela Arte e Artesanato, por isso não me é possível dissociar-me deste gosto ou ter noção do seu início. Sempre me interessei e quis aprender várias técnicas, o que aconteceu bastante cedo. Aos 8 anos comecei a frequentar um atelier onde iniciei o meu percurso através da Pintura a Aguarela, seguindo-se outras técnicas. As obras iniciais foram e continuam a ser bastantes importantes para mim e continuo a tê-las expostas no meu atelier.

CL – Quais as principais influências que recebeu? Quais os artistas que mais a marcaram?

AC – Tendo começado muito cedo, considero que as pessoas que me apoiaram e incentivaram foram importantes e decisivas para o meu percurso artístico. Relativamente aos artistas que me influenciaram, foram sobretudo os surrealistas, como Eduardo Luiz, Magritte, Chirico, entre outros.

CL – É licenciada em Conservação e Restauro e tem o mestrado em Museografia e Museologia. Qual o seu percurso profissional neste domínio?

AC – Desenvolvi parte da minha actividade profissional na área da Conservação e Restauro de Pintura Mural, que aprofundei durante a minha formação. Fiz parte de equipas que intervencionaram várias obras de Conservação e Restauro de Pintura Mural, sobretudo em Património Classificado no Norte do País. Senti necessidade de ingressar no mestrado em Museologia e Museografia como complemento da minha formação inicial. Neste momento abracei um novo projecto relacionado com a Conservação e Restauro de obras contemporâneas.

CL – Qual o trabalho de restauro que mais gostaria de fazer?

AC – Tal como a Pintura, a Conservação e Restauro sempre me fascinou e sempre tive a convicção que faria parte do meu percurso de vida. Considero que a Conservação e Restauro nos coloca desafios e aprendizagens constantes pelo facto de cada peça/obra ser única e necessitar, por isso, de uma intervenção específica. Coloco a mesma paixão e empenho em todas as intervenções, pelo que não consigo escolher nenhuma.

“A CONSERVAÇÃO E O RESTAURO NÃO SÃO DEVIDAMENTE CONSIDERADOS”

CL – Na sua opinião, em Portugal, a conservação e o restauro são devidamente considerados, ou deviam ser mais apoiados?

AC – Não são devidamente considerados. Ainda existe um grande desconhecimento em relação quer à disciplina da Conservação e Restauro, quer ao papel do Conservador-restaurador. As intervenções devem ser feitas por técnicos especializados segundo os critérios éticos e deontológicos da profissão. Os apoios existentes, umas vezes maiores outras menores, tornam-se insuficientes para a quantidade de património a necessitar de intervenções.

CL – Como tem sido conciliar o trabalho no domínio da conservação e restauro com a sua carreira artística? Existe algum tipo de partilha entre ambos?

AC – A conciliação de ambas as áreas nem sempre é fácil, exige muita organização, empenho e planeamento. Sendo duas áreas muito distintas, considero que a conservação e restauro, quer pela técnica e conhecimentos que implica, quer pela possibilidade de ver muitas peças, me inspira e acaba por ter também influência no meu processo criativo.

CL – Quais as principais preocupações na preparação/escolha dos trabalhos expostos na mostra ‘Blues Me #2’?

AC – As exposições devem, no meu entender, contar uma história, funcionar quase com um diálogo mudo entre o artista e o espectador. Para que essa comunicação exista é necessário a preparação da linha condutora da exposição e selecção dos trabalhos que mais se adequem ao tema e história. O azul, que lança o mote à exposição e está presente em todas as obras, quer na cianotipia quer em detalhes a óleo e acrílico, simboliza o infinito; o fim e o começo, bem como a dualidade humana, em sentido abstracto, mas que se materializa em todas as obras através da utilização do preto no branco e dos elementos mais detalhados e coloridos.

Foto: Paulo Rodrigues

CL – Quantas obras estão expostas nesta exposição? Quais os temas abordados?

AC – Estão expostas cerca de 30 obras, que têm dois pontos de ligação muito fortes, a paisagem e o azul. O meu trabalho é sobre sítios e momentos, e o que me rodeia e observo em viagens ou situações quotidianas transformando-se assim nos temas abordados. A Natureza é, por isso, retratada em todos os meus trabalhos, sendo sempre o elemento central.

CL – O que a levou a optar pela Cianotipia, um tipo tão específico de impressão fotográfica?

AC – A simplicidade e complexidade deste processo alternativo de Fotografia levaram-me a querer aprender e estudar esta técnica. Além da sua cor azul característica, que gosto de explorar, fascina-me também a possibilidade de utilizar elementos da Natureza e de os poder imortalizar e representar através da sua forma e detalhes essenciais, despojando-os de tudo o que é superficial e por isso, retratar apenas a sua essência.

CL – Nos seus quadros junta as duas técnicas, Cianotipia e Pintura. A Pintura, para si, é um acto de experimentação?

AC – Para mim, ambas as técnicas são actos de experimentação. A junção de duas técnicas é um desafio, por serem materiais e processos muito diferentes e também pelos próprios resultados obtidos, que originam um contraste que gosto de explorar. O foco e desfoque, a linguagem detalhada e a livre, a monocromia do preto e a cor, que integro no meu trabalho.

CL – Quais os temas que mais gosta de abordar nos seus trabalhos?

AC – Nos últimos anos tenho explorado o conceito de diário de viagens, onde registo alguns momentos, ambientes e situações, com o intuito de despertar o observador para diversas realidades físicas e emocionais. Para mim, é muito interessante a comunhão com a Natureza. O retrato de locais pacíficos e isolados, em que pequenos detalhes deixam antever que já foram habitados e que dessa ocupação existem apenas vestígios; um sofá, um barco, um elemento arquitectónico.

“A PINTURA COMO PONTO DE PARTIDA”

CL – Refere-se às suas obras como sendo vivências e momentos capazes de proporcionar uma viagem única? Encara a Pintura como uma viagem interior capaz de nos transportar pelas nossas memórias?

AC – Para mim sim, a Pintura proporciona uma viagem única. É uma viagem interior capaz não só de eternizar momentos, sítios ou situações, mas funcionando também quase como terapia, permitindo desbloquear situações. A Pintura dá-nos outro entendimento sobre o que nos rodeia, e penso que isto acontece, tanto quando se cria uma obra como quando se observa.

CL – Como encara essa dinâmica entre o artista e o público?

AC – Tenho sempre muito gosto e curiosidade em saber, como cada observador sente e como interpreta a minha obra. É este diálogo e dinâmica que nos enriquecem. Por vezes a interpretação vai de encontro ao que idealizei quando realizei a obra, outras vezes é o oposto. Essa troca de ideias para mim é muito valiosa e fundamental, cumprindo o propósito da criação.

CL – O Surrealismo é um refúgio ou um ponto de partida para dar a conhecer a sua obra sem manual de instruções?

AC – É um ponto de partida. Como referi, dou muito valor ao diálogo que cada obra permite criar. Sem limitar ou impor aquilo que deve transmitir. Cada um observa, interpreta e sente a obra à sua imagem, e penso que isso é fundamental.

CL – Houve um período, mais recente no seu percurso, em que preferiu passar a pintar histórias a preto e branco, com detalhes em Cianotipia e/ou óleo. Porquê?

AC – No meu trabalho procuro assumir e explorar as técnicas mais simples e tradicionais, daí o recurso à tinta-da-china. Exploro também a sua crueza, em contraste com elementos a acrílico ou óleo que desconcertam e levam o observador a questionar realidades, situações e comportamentos. À tinta-da-china, que funciona como um registo inicial mais brusco, desenrolam-se as restantes cenas, a óleo ou cianotipia. Tenho focado o meu trabalho na procura deste contraste entre o registo monocromático com o cromático, na dualidade dos sonhos e da realidade.

Foto: Paulo Rodrigues

CL – O que são os ‘não-lugares de não-gente’ abordados na sua Pintura? Qual o valor da subjectividade nas suas obras?

AC – São sítios inabitados. Locais onde alguns detalhes deixam antever a sua ocupação, mas de forma muito subtil. São a ausência, o passado, a calma, a viagem interna de cada um de nós. Há caminhos que são feitos dentro de nós, histórias acontecidas e pensadas, cuja aspereza implica uma expiação. Por outro lado, nas artes plásticas podemos ser menos reveladores, escrevermos nas entrelinhas as nossas memórias, boas ou más, imortalizando-as. Poucos saberão das histórias contidas nas minhas obras, alguns imaginarão as suas próprias.

CL – Já participou em inúmeras exposições individuais e colectivas em Portugal e no estrangeiro. Qual a marcou mais?

AC – Todas as exposições têm a sua importância e fazem parte de um percurso, e por isso todas são especiais. São quase que um propósito para o trabalho. Expor as minhas obras, é sair da zona de conforto da criação, e passar dos momentos solitários para os de partilha.

CL – Qual a importância das viagens na sua obra? O que mais a tem marcado nas viagens que realizou?

AC – Viajar é fundamental para o meu processo criativo. É nessas viagens que posso absorver o ambiente e energia dos espaços reflectidos nos meus trabalhos. É a comunhão com os sítios que gosto de descobrir e isso apenas é possível conhecendo-os nas suas várias dimensões. O que mais me marca é a procura da forma mais simples de cada lugar, conhecer as pessoas e a forma como vivem e interagem com os seus locais, mas depois fazer todo o processo de procura de simplicidade em cada recanto, e os pequenos detalhes que fazem cada sítio único.

CL – Projectos para o futuro? Próximas viagens? Próximas exposições?

AC – No presente ano de 2021 encerro as exposições justamente com a ‘Blue Me #2’ na Biblioteca de São Domingos de Rana. Estou já a trabalhar para as próximas exposições, que ocorrerão em 2022 e que serão sobretudo em Portugal. Blue continuará a ser o mote para desenvolver vários projectos, onde contarei mais histórias de viagens que acontecem muitas vezes sem programação. Não sendo o processo de criação hermético, podem surgir outras formas de contar histórias…

Autor: Luís Curado

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