Tânia Safaneta: “O Palhaço é um terapeuta da alma”

A Arte de fazer rir sempre foi importante na História da Humanidade. Para esquecer as amarguras, para carregar baterias com energias positivas, para deixar de lado as tristezas. Há mesmo quem defenda que ajuda a disfarçar as rugas. Seja qual for o motivo, rir será sempre o melhor remédio, quanto mais não seja para não nos levarmos demasiado a sério. Nem sempre é fácil, às vezes é bastante complicado, será sempre desejável, uma conquista. Uma gargalhada dada com prazer tem o poder de uma bomba… de boa-disposição. Plantar sorrisos em caras tristes será sempre um investimento social de inestimável valor. Um sorriso faz abrir horizontes de esperança. Já escrevia o poeta, jornalista, humorista e moralista francês Nicolas Chamfort (1740-1794): “O dia mais perdido de todos é aquele em que não se riu”.

Um palhaço é um doutorado em gargalhadas, um terapeuta do riso que sabe lidar com a espontaneidade e surpreender o público com uma arte temperada com muito improviso. Pode ser desconcertante, porque desconcerta/desconstrói a realidade, dá-lhe uma interpretação original, constrói um mundo de absurdos relativamente ingénuos que contrasta com um mundo de absurdos tantas vezes cruéis com que nos deparamos no dia-a-dia, no nosso e no dos telejornais. Ora, em tempos de pandemia e confinamentos, é mais difícil um artista interagir com o seu público, com uma audiência que aprendeu a diagnosticar para poder desenvolver o seu desempenho. As saudades que isso provoca e o desconcerto que causa na vida de um protagonista desta Arte são-nos revelados por Tânia Safaneta, uma artista Palhaça com cunho próprio.   

Natural de Évora, mas a viver em Sintra, esta artista, de 39 anos, autodefine-se como “uma pessoa, um Ser, uma criatura, uma Coisa mais ou menos assim: Uma Clown”. Na sua página nas redes sociais, em jeito de apresentação de si mesma, partilha uma citação que lhe é muito especial, atribuída ao poeta popular algarvio António Aleixo (1899-1949): “Os camelos bebem água, de dois em dois dias. Ó tu não sejas camelo, bebe água, todos os dias.” Tânia Safaneta, cujo nome completo é Tânia Isabel Polquinhas Safaneta, tem participado em inúmeros projectos, num deles com Fernando Terra, coordenador artístico de ‘Rugas de Riso’, um programa de visitas regulares a lares de idosos. Como também escreveu Aleixo: “Após um dia tristonho / de mágoas e agonias / vem outro alegre e risonho: / são assim todos os dias”. Vamos acreditar!

Foto: Paulo Rodrigues

“NASCI NUMA 3ª FEIRA DE CARNAVAL. ACHO QUE ERA UMA MENSAGEM…”

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Como nasceu esta paixão pela arte de representar, pelo improviso? Que idade tinha e onde foi a primeira actuação, de que constou?

Tânia Safaneta (TS)– A minha primeira actuação foi quando andava na Escola N.º 3 de Sintra, na peça ´À espera de Pedro de Sintra’, no dia 21 de Março de 1992, tinha 10 anos. Participei na I e II Mostra de Teatro das Escolas de Sintra. A paixão de representar começou com a existência deste projecto, vi aí um mundo que me fascinava. Este projecto fantástico, desenvolvido numa parceria entre a Câmara Municipal de Sintra (CMS) e O Chão de Oliva, Centro de Difusão Cultural em Sintra, ainda existe e continuo a fazer parte dele, sou filha dele. Agradeço ao Chão de Oliva e à CMS por ainda financiar este projecto tão importante. Onde nasceram artistas. 

CL – O que fez despertar em si o clown? O que a levou a optar por este personagem?

TS– Acho que o clown nasceu comigo. Desde criança que digo que quero ser Palhaça, é um sonho. Todos os dias, desde os meus cinco anos de idade, sonho em ser uma mulher palhaça. Sonhei muito acordada, imaginava os espectáculos e um dia tornou-se real. Quando se deseja muito, com fé, alma e coração, os desejos são ouvidos. Além disso, nasci numa 3ª feira de Carnaval… acho que isto era uma mensagem. 

CL – É fácil ser Palhaça nos dias em que vivemos?

TS– Não. Acho que nunca foi fácil, é um desafio. É uma arte pouco valorizada no nosso País. Acho que até é uma arte desconhecida. O público só conhece o Palhaço na pista de Circo. Agora foi criada a UPP – União Palhaças em Portugal para dar a conhecer mais esta arte.

CL – O riso é um bom remédio para combater a pandemia?

TS– Claro, é um grande e bom remédio, mas é preciso conseguir rir neste momento que estamos a atravessar. E fazer rir. Talvez quando isto passar possamos rir com gosto, porque agora é difícil, principalmente para mim. Cada um tem o seu refúgio.

CL – Como tem enfrentado a obrigatoriedade de ficar afastada do seu público? 

TS– Com muitas saudades. Saudades de brincar com as pessoas e vê-las rir. De me rir com elas. Da liberdade de ser livre naquele grande palco que é a rua, de toda aquela loucura boa e saudável. Tenho saudades de olhar o público e de entregar toda a minha energia e criar momentos absurdos.

CL – Teve um espectáculo denominado ‘Momento Absurdo’. Vivemos um tempo absurdo actualmente? A Vida está mais cheia de Momentos Absurdos?

TS– A Vida é um ‘Momento Absurdo’. O Ser Humano é um ser absurdo.

CL – Quais as consequências da pandemia COVID-19 no seu dia-a-dia?

TS– É uma inércia e frustração totais. Tentar viver cada dia a salvo.

CL – Que soluções tem procurado encontrar para manter a sua actividade artística?

TS– Estou só à espera… manter a calma… às vezes não é fácil. 

Foto: Paulo Rodrigues

“SER PALHAÇA É A MINHA MISSÃO DE VIDA”

CL – Como classifica a arte que pratica?

TS– É uma arte nobre e bonita. Ser Palhaça é ser uma terapeuta da alma. É a minha missão de vida.

CL – Nos tempos que correm é mais complicado fazer rir as pessoas?

TS– Sim, claro. Há uma grande tristeza nas pessoas. Está tudo a pedir carinho, como pede o mister Jorge Jesus. Primeiro, muito colinho e mimos. Depois, vem a gargalhada. Agora é cuidar da sanidade mental, que é muito importante. E o riso é uma ferramenta muito importante, que dá saúde. 

CL – Há falta de riso no Mundo? 

TS– Há imensa falta de riso no Mundo. Acredito que rir eleva a energia positiva no Planeta. Gostava de ver a Humanidade a rir, nem que fosse só por uns segundos, todos juntos. Já melhorava bastante…

CL – Tem alguma referência artística que a tenha influenciado, em Portugal e no estrangeiro?

TS– Sim, em Portugal é a Teté. No estrangeiro é o ‘Mr. Bean’ (Rowan Atkinson), o Charlie Chaplin e a companhia russa Licedei.

CL – Define-se a si mesma como ‘Uma pessoa, um Ser, uma criatura uma Coisa mais ou menos assim. Uma Clown”. Que tipo de clown procura ser? Essa personagem tem mudado ao longo do tempo? Que características ganhou? Que características perdeu?

TS– Procuro ser uma clown provocadora, humana, activista, excêntrica. Tenho mudado muito ao longo do tempo, mas ainda estou no fim da adolescência. Para já, acho que ainda não perdi nada. Só melhorei, como por exemplo, a capacidade de escuta, mais ferramentas de improviso, experiência, cabelos brancos e rugas.

CL – Qual foi a personagem que mais gostou de interpretar?

TS – A mais importante, e será sempre a mais importante, é o meu Palhaço, é a ‘Safaneta’, que criei há cerca de 20 anos. Sinto, também, paixões muito especiais, embora diferentes na forma de estar, pelo ‘Bobo da Corte’ e pela ‘Viúva’, que faço nas Feiras Medievais. Tenho também a ‘Saloia’, uma personagem muito conhecida, sobretudo na Arruda dos Vinhos, onde fui fazer um Mercado Oitocentista, um bocadinho inspirada na ‘Bruxa da Arruda’. E tenho ainda a ‘Mulher do Boi’, uma personagem especial que criei para o Festival Novas Invasões, de Torres Vedras.

CL – E a que menos lhe agradou?

TS– Foi uma de que nem me lembro do nome. Fiquei tão zangada com essa personagem… Foi em Odrinhas, num Mercado Romano, e era uma bruxa e tinha um fato roxo. Quando olhei para a roupa, e por mais que estivesse pintada, não senti nada, aquilo não me inspirava, ficava feio, depois havia pouca gente na feira, era o primeiro ano que se realizava, e eu não conseguia. Olha, ganhou a roupa, porque eu não consegui. Eu tenho de sentir mesmo, eu não finjo. Quando eu sinto mesmo a personagem, aquilo torna-se real.

CL – Como decorre o processo criativo das suas personagens?

TS– Há quem no Teatro, primeiro crie o personagem, estuda-se muito, depois vê-se a cenografia, a seguir veste-se. Depois de estar tudo estudado, vai-se interpretar. Eu faço um processo inverso. É logo na hora. Há aquele guarda-roupa, ou crio um guarda-roupa de propósito, e de repente a criação é ali, o meu palco é a rua, com o público, aquilo é um laboratório vivo, porque estou a criar na hora. Cada reacção que o público me dá, ou aquilo que eu estou a sentir também, porque eu posso estar triste, zangada, contente, eufórica… tudo o que eu posso estar a sentir é metido na personagem naquele momento. E tudo o que eu estou a observar também (pode ser uma mosca a passar, um pato, ou uma pessoa), eu pego nisso e coloco na personagem. É um processo que exige muita energia, muita adrenalina, e que cansa muito, a mente e o corpo. Criar algo é uma magia muito bonita, que o público ajuda a criar, e dá-me imenso prazer participar em todo esse processo criativo.    

CL – Tem algum sonho por concretizar? O que gostaria de fazer em termos artísticos que ainda não lhe tenha sido possível realizar?

TS– Gostaria de ir ao Circo Monte Carlo representar Portugal e ganhar o Palhaço de Ouro e fazer um espectáculo em Paris. Outro dos meus sonhos e projectos é ter uma escola/laboratório de pesquisa da Arte do Palhaço em Sintra. Por isso criei há uns anos a Heart Clown – Movimento da Arte do Palhaço. Pretendo dar a conhecer ao público que o Clown não é somente um entertainer, mas também um curador da alma.Quero continuar focada nesta minha missão de vida.

“ALÁCAZUMALÁCAZÁ DESAPARECE DAQUI JÁ!”

CL – O que é que a Tânia Safaneta, enquanto Clown, diria à pandemia ‘COVID-19’ se esta fosse uma personagem de um ‘Momento Absurdo’?

TS– Alácazumalácazá desaparece daqui já!

CL – Os portugueses estão mais risonhos ou mais sisudos?

TS – Mais sisudos, mas é normal… 

CL – Face à forte redução de actividade que tem enfrentado, tem recebido algum tipo de apoio das entidades públicas, nomeadamente do Ministério da Cultura?

TS– Do Ministério da Cultura ainda não tive apoio algum. Da Santa Casa da Misericórdia recebi uma pequena grande ajuda. E tenho recebido o layoff pela Segurança Social, que agora ficou reduzido.

CL – Que projectos tem actualmente activos?

TS– Tenho o projecto ‘Okupa’, no qual faço um trabalho muito especial, intuitivo, em que crianças com necessidades de saúde especiais são protagonistas nas brincadeiras no seio do grupo onde outras estão, assim toda a comunidade escolar pode interagir. E tenho o ‘Projecto Sintra Inclui’, que está em fase de desenvolvimento. Trata-se de uma parceria entre o Departamento de Educação da CMS e a Associação ‘Pais em Rede’, que ajuda a comunidade de alunos com necessidades de saúde especiais a transitar para a vida profissional. Aqui vou desenvolver um projecto artístico.

CL – Como é que o riso pode ajudar a combater o confinamento, por exemplo nos lares de idosos e nos hospitais?

TS– O riso é o melhor remédio. Mas neste momento não está fácil para interagir e ajudar. Tenho amigos que continuam a fazer um bom trabalho nestas instituições. As pessoas estão carentes de afecto, dou os parabéns a quem continua a correr riscos para dar este mimo.

CL – Planos para o futuro?

TS– Neste momento, não tenho. É um dia de cada vez. Ficar em casa quietinha, pensar na vida, e esperar que surja o momento certo para intervir com o meu trabalho.

AMAMENTAR NAS PAUSAS DOS ESPECTÁCULOS

Mãe de uma menina de 12 anos, Tânia Safaneta recorda como foi acompanhar o processo de crescimento da filha nos primeiros tempos e manter a actividade artística ao mesmo tempo, no fundo conciliar a carreira profissional com o papel de mãe.

“Eu comecei a trabalhar numa companhia de Teatro de Rua. Quando me apercebi que ia ser mãe, tomei uma decisão, porque eu tinha de viajar por todo o País, nunca estava em casa e não ia estar muito presente. Então, decidi estar mais presente com a filhota em casa, dar-lhe toda a atenção possível. Estive dois anos e meio só dedicada a ela. Claro que ia fazendo alguns trabalhos esporádicos perto de onde morava, mas estava muito dedicada à minha filhota. Antes, era uma coisa diferente, viajava pelo País todo, andava de um lado para o outro. Depois, quando ela nasceu, nos primeiros tempos, como ela mamava, lembro-me, por exemplo, de uma vez, antes de um espectáculo de Natal em Montelavar, estar vestida de palhaça, com a mama de fora, a dar de mamar à criança. Foi assim durante algum tempo, enquanto fiz espectáculos, ela estava sempre pertinho de mim. No meio das pausas dos espectáculos, lá estava eu a amamentar. Ela cresceu a andar comigo nos festivais, ia comigo para todo o lado, e adormecia-me para ali em qualquer sítio onde eu tinha de fazer os espectáculos.”

MUITAS PRESENÇAS EM FESTIVAIS E NÃO SÓ

Tânia Safaneta tem um vasto currículo de participações em inúmeros projectos, festivais e programas artísticos. A saber: Festival Periferias (Sintra), Festival do Crato (com o espectáculo ‘Momento Absurdo’), Hat Weekend Festival (São João da Madeira), Festival i! – Artes para o Público Infantil (Águeda), Festival Bambolinices – Bienal de Teatro e Artes Performativas (Setúbal), Festival Tradidanças – Festival de Tradições, Dança, Música e Natureza (São Pedro do Sul), Festival Internacional de Palhaços (Vila do Conde), Mostra Gargalhadas na Lua, na Casa do Coreto (Carnide, Lisboa), Feira Quinhentista (Sintra), Setecentista (Queluz), Mercado Oitocentista (Arruda dos Vinhos), Festival Novas Invasões (Torres Vedras) e muitos mais.

PALHAÇOS JÁ FAZIAM RIR NA ANTIGUIDADE

Há referências históricas a figuras semelhantes ao que identificamos como Palhaço desde 2500 antes de Cristo, no Antigo Egipto. Também a Grécia Antiga e a Roma Antiga, na Europa, a China Antiga, na Ásia, e a Civilização Asteca, na América, já tinham os seus palhaços.

Autor: Luís Curado

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.