António Ramos: “O mar é sempre generoso para com os pescadores”

É uma tradição que se mantém desde há décadas em Cascais. No último dia das Festas do Mar, anteriormente designadas Festas dos Pescadores de Cascais, realiza-se a muito popular Procissão em Honra de Nossa Senhora dos Navegantes, que começa em terra, nas ruas da vila, e termina no mar, em homenagem à padroeira dos pescadores cascalenses, uma tradição que passou a integrar, em 2015, o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial da Direcção-Geral do Património Cultural.

Foi assim, também, na edição 2023 das festas que marcam o Verão nesta vila de reis e pescadores cujos encantos têm vindo a conquistar o coração de turistas de todo o Mundo e a criar novos desafios à manutenção da sua identidade. Na tarde do passado dia 3 de Setembro, mais uma vez, os barcos de pesca, engalanados, seguiram em cortejo, por mar, até junto ao farol da Guia, depois de os andores efectuarem um percurso em terra, pelas ruas da vila, com partida da igreja matriz de Cascais.

“A Procissão da Nossa Senhora dos Navegantes é um momento que celebra a identidade e a História de uma terra ligada ao mar, com os olhos e o coração postos no céu”, assinalou o padre Nuno Coelho, da Paróquia de Cascais, que nos últimos anos tem acompanhado esta manifestação de fé que junta os homens do mar, no momento de agradecerem as graças concedidas e renovarem o pedido de ajuda divina para quem faz da faina o seu modo de vida, sem deixar de aproveitar também para recordar aqueles que já partiram.

Foto: Paulo Rodrigues

Organizadas pela Câmara Municipal de Cascais (CMC) desde 1965, as Festas do Mar integram sempre esta vertente religiosa em honra da protectora dos pescadores. A procissão é um dos eventos mais tradicionais realizados na vila, durante o qual o andor com a imagem da santa é transportado a bordo de um barco de pesca, seguido por mais imagens a bordo de outras embarcações. Um momento particular de emoção e de demonstração de fé que não deixa ninguém indiferente.

Durante o cortejo realizado no mar, com partida do pontão da praia da Ribeira, também conhecida como praia do Peixe ou dos Pescadores, na baía de Cascais, os barcos seguiram até junto do Farol da Guia, tendo sido lançados à água coroas e ramos de flores em memória dos pescadores já falecidos. A bordo da embarcação que transportou a imagem, a São Bartolomeu do Mar, seguiram várias individualidades, entre as quais o Presidente da CMC, Carlos Carreiras, e outros elementos do seu executivo, como o vereador Francisco Kreye.

Findos os festejos que marcam o Verão de Cascais, nem tudo são motivos de regozijo entre os pescadores, que continuam à espera da concretização de algumas promessas que lhes foram feitas, mantendo-se fiéis à fé que sempre os moveu para atingir os seus desejos. O jornal ‘O Correio da Linha’ esteve à conversa com António Ramos, Vice-presidente da Associação de Armadores e Pescadores de Cascais, sobre as Festas do Mar e sobre alguns dos sonhos dos homens do Mar que continuam por concretizar.

Foto: Paulo Rodrigues

“CADA UM AGRADECE À SUA MANEIRA”

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Como correu a procissão deste ano em honra de Nossa Senhora dos Navegantes?

António Ramos (AR) – Este ano, foi complicado. Estivemos à beira de não poder realizar a procissão, devido ao mau tempo. No regresso do mar, já não pudemos trazer os andores com as imagens. Tive que descarregar as padiolas dos barcos e formar as imagens em cima do palco para o padre as poder benzer. Só depois é que as trouxe para cima. As imagens que integram a procissão costumam ser oito, mas este ano estava uma imagem estragada, por isso foram só sete.

CL – Quantos barcos participaram na procissão deste ano?

AR – Na parte do mar da procissão, que demorou cerca de duas horas, participaram para aí uns 25 barcos.

CL – Como são escolhidos os barcos que transportam as imagens?

AR – Isso é feito por sorteio. É assim que se decide qual o barco que transporta cada uma das imagens. Candidatam-se os donos dos barcos aqui de Cascais, com capacidade para transportar as imagens, que manifestam interesse em participar na procissão. Entretanto, as embarcações que não transportam qualquer imagem, ficam à espera das outras carregarem os andores e, depois, recebem a bordo pessoas, crentes, que mostrem interesse em acompanhar o cortejo no mar.

Foto: Paulo Rodrigues

CL – Qual o barco que transportou a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes? Quem seguiu a bordo?

AR – Foi o São Bartolomeu do Mar. O barco que transporta esta imagem, que vai à proa da embarcação, tem de ter capacidade para carregar a padiola com a santa, que é muito grande e pesada, as pessoas que levam a padiola e várias individualidades. Este ano, seguiram a bordo o Presidente da Câmara, Carlos Carreiras, o Presidente da Junta de Freguesia Cascais Estoril, Pedro Morais Soares, o comandante do Porto, comandante Gomes Agostinho, o Presidente da Junta de Freguesia de Alcabideche, José Filipe Ribeiro, outras altas individualidades, o pessoal da igreja e outras pessoas, como Lili Caneças.  

CL – Que pedidos fazem os pescadores à sua santa padroeira?

AR – Levar a imagem é sempre uma forma de prestar uma homenagem à Nossa Senhora dos Navegantes. Cada um agradece à sua maneira, da forma que é mais íntima para si. Em termos gerais, pedimos saúde e para que o mar nos deixe trabalhar e nos trate bem. E também pedimos bom tempo. Este ano, deixou-nos fazer a procissão, que toda a gente dizia que era impossível e que a meteorologia também assim deixava prever. Mas a verdade é que conseguimos cumprir a tradição. Ao fim e ao cabo, há um ditado que diz que a fé é que nos salva e, de certa forma, a gente acredita nisso.

CL – O último ano foi bom para os pescadores?

AR – Os anos costumam ser bons. Nuns há mais umas coisas, noutros há menos outras coisas. Há anos em que há mais polvo, outros em que há mais linguados, outros com mais santolas…

CL – Portanto, o mar tem sido generoso para com os pescadores…

AR – O mar, desde que deixe a gente ir e vir todos os dias, é sempre generoso. A gente safa-se.

Foto: Paulo Rodrigues

“ANTIGAMENTE ÉRAMOS NÓS QUE FAZÍAMOS TUDO”

CL – A tradição, personalizada neste evento que conta com a participação dos pescadores, e a modernidade e eventos musicais das Festas do Mar convivem bem?

AR – Antigamente, éramos nós que fazíamos tudo nas Festas do Mar. Tínhamos o pau de sebo, corridas de chatas, garraiadas na praia, um concurso de pegas, fado profissional e amador, ranchos folclóricos, vários grupos musicais da região. Lançámos aqui alguns desses grupos. Tudo começou no tempo do presidente José Luís Judas. Falei com ele, a dizer-lhe que gostava de fazer umas festas aqui na vila, organizadas pelos pescadores, e recebemos um subsídio para isso.

No primeiro ano, construímos um palco e utilizámos a aparelhagem da Câmara nos espectáculos de fado e actuações de ranchos folclóricos. Grelhávamos aqui sardinhas, que servíamos no pão. Chegámos a vender mais de 100 caixas de sardinhas. Fazíamos tudo sozinhos, sem restaurantes nem nada. Foi um sucesso tal, que no ano a seguir, já havia aqui restaurantes, roulottes, barracas de feira… já toda a gente queria participar nas Festas.

CL – Quanto tempo duravam as Festas do Mar nesses primeiros anos?

AR – Na altura, as Festas do Mar duravam todo o mês de Agosto. Todos os dias havia festa. Toda a gente estava aí a trabalhar, com coisas baratas e simples. Só que estamos em Cascais e… quer a gente queira quer não tudo isso mudou.

Foto: Paulo Rodrigues

CL – Os pescadores têm perdido protagonismo nas Festas do Mar?

AR – Eu já, uma vez, disse ao Senhor Presidente que o próprio cartaz das Festas tem os nomes dos artistas em letras grandes e a procissão está anunciada com umas letrinhas que quase nem se vêem. Agora, a procissão recebeu a classificação atribuída no âmbito do Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial da Direcção-Geral do Património Cultural, que vem dar uma maior visibilidade.

Enfim, as Festas são aquilo que as pessoas quiserem. Qualquer um sabe que se houver dinheiro disponível coloca ali artistas cabeças de cartaz.  As Festas são aquilo que se pode pagar, não tem nada que saber. São opções…

CL – Como é que os pescadores convivem com Cascais Turística?

AR – Cascais era uma terra de pescadores. De reis e pescadores. Os reis já não existem e os pescadores vão-se mantendo aqui. Eu acho que estamos bem enquadrados, só que a Câmara podia ajudar mais. Já uma vez tentaram certificar o polvo de Cascais e, agora, podiam certificar os linguados. Podiam também fazer umas festazinhas dentro deste tipo de festas, mas com peixe de cá, com marisco de cá, divulgar mais a pesca em si. Só que isso não tem acontecido.

Todas as outras terras procuram divulgar o melhor que têm para oferecer. Eu acho que deviam incentivar mais a vila, que tem pescadores que apanham peixe de qualidade. Isto até ajudava os restaurantes locais. Em Cascais, toda a gente gosta dos pescadores e os pescadores são muito queridos e são muito amigos, no dia da procissão. Depois, as coisas vão sendo diluídas e esquecem-se de nós.

Foto: Paulo Rodrigues

“ESTÃO A FAZER… 33 CASINHAS”

CL – Em Outubro de 2022, a CMC anunciou a aprovação da ratificação do despacho para o lançamento do processo para o concurso público para a empreitada de ‘Requalificação do Cais de Aprestos’. Como está a decorrer este processo?

AR – Estão ali a fazer 33 casinhas para guardar os aprestos dos pescadores, só que fizeram aquilo com gretas de dois centímetros no telhado e dos lados, as estruturas não são fechadas. Já falámos com a Câmara a pedir que rectificassem isso, porque aquilo não tem cabimento. Eles não querem que ninguém durma lá, por isso construíram as casinhas de forma a poder chover lá dentro, só que chove para a roupa, chove para os telemóveis, chove para as coisas da faina que ali guardamos… Entretanto, a Câmara prometeu-nos que vai alterar isso. Estas casinhas estão a ser construídas com base num projecto Portugal 2020, subsidiado por fundos europeus. 

CL – Esta obra responde às vossas necessidades? Participaram no planeamento?

AR – Sim, participámos. Tivemos reuniões, mostraram-nos o projecto. São 33 casinhas para as 33 embarcações actualmente no activo registadas em Cascais. Cada um desses barcos vai ter a sua própria casinha, só que não temos espaço suficiente para guardar tudo o que temos. Eles, ao construírem as casinhas como estão a fazer, resolveram o problema deles. Visualmente…

Nestas casinhas cabe a nossa roupa e as coisas mínimas. Não cabem os covos, não cabem as redes, não cabe mais nada. Isto não foi feito para bem dos pescadores, apesar de ficar um pouco melhorzinho. Isto foi feito para bem da imagem da vila. Estava ali um mau aspecto e estão a tentar afastar esse mau aspecto.  

Actualmente, o nosso material da faina está onde era o Hospital Antigo, à balda, ao Deus-dará. E vai passar dali para um espaço no topo da Terceira Circular, ao pé da entrada da Quinta das Patinhas. Cada vez que vamos ao mar, temos de ir buscar uma carrinha, ou temos que ter uma carrinha, para transportar as coisas até aos barcos. 

Foto: Paulo Rodrigues

CL – A CMC, na voz do seu presidente, tem referido, nomeadamente em conversa com responsáveis da Doca Pesca e de Autoridades Marítimas, que em nenhum outro porto a Câmara tem uma intervenção como tem a CMC, na salvaguarda das condições de trabalho dos pescadores. O que pensa a Associação de Armadores e Pescadores de Cascais disto?

AR – É a opinião do Senhor Presidente. Cada um tem a sua própria opinião. Bem, a Câmara queria fazer da Praia do Peixe uma praia de banhos. Queriam correr com a gente dali. Portanto… Na altura, fomos alertados para isso e acabámos por conseguir impedir que acontecesse. Aquela praia tem licenças de encalhe e podemos encalhar lá os barcos. Queriam tirar-nos essa possibilidade. Se fosse transformada numa praia de banhos, já não podíamos fazer isso. E ainda tínhamos de deixar o barco a 300 metros da praia, nem sequer ficávamos com a protecção da marina.

Também estamos há cerca de um ano sem grua para poder retirar as embarcações da água para fazer as reparações e manutenções necessárias. Essa grua foi-nos prometida para substituir uma outra, mais antiga, que estava sempre a avariar, mas ainda não foi instalada, por terem cortado a base de cimento da primeira. Agora, estamos à espera da realização de um estudo do pontão para poderem instalar a nova grua.      

Antigamente, o parque de estacionamento dos pescadores era ao pé do restaurante Beira-Mar, junto à baía, depois passámos lá mais para cima, para o parque de estacionamento do quartel. Agora, meteram connosco num parque junto à Casa das Histórias Paula Rego e ainda chegaram a entregar-nos uns cartões para estacionarmos junto ao Hipódromo. Ou seja, cada vez estamos mais afastados do local onde temos os barcos.

Foto: Paulo Rodrigues

“TÊM OUTRAS PRIORIDADES”

CL – Os Pescadores de Cascais sentem falta de apoio?

AR – Vamos lá ver… estamos numa situação em que o apoio é demorado. As coisas são feitas, mas não são feitas bem, e são feitas devagarinho. Têm outras prioridades. As decisões são bastante lentas para as nossas necessidades. A Câmara ajuda e faz as coisas, mas… 

CL – Os pescadores queixam-se também da lota de Cascais…

AR – A lota já está a funcionar no mesmo sítio onde estava, mas apenas com pesagens. Pesamos ali o pescado, mas não o podemos vender. O peixe segue depois para outras lotas para ser vendido. É uma lota morta. Para poder funcionar, devia ser concessionada, até para defender melhor os interesses dos pescadores.

Foto: Paulo Rodrigues

Autor: Luís Curado

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