Barão da Cunha: “A liberdade tem como contraponto a responsabilidade”

Manuel Júlio Matias Barão da Cunha, de 82 anos, viveu de perto o 25 de Abril de 1974, que marcou o fim de um regime autoritário e ditatorial, para implantar no País o sistema democrático em que hoje vivemos. Quase 50 anos depois da Revolução dos Cravos, o Coronel de Cavalaria condecorado com a medalha de Cruz-de-Guerra, agora na reforma, recorda os dias da Revolução dos Cravos e o fim da Guerra Colonial em África, em que também participou tal como muitos jovens da sua geração. 

Licenciado em Ciências Militares e Ciências Sociais e Políticas e com o Curso Geral do Estado-Maior do Exército, o nosso entrevistado comandou tropas durante a guerra em África, entre 1961 e 1974, tendo participado na Operação Viriato que resultou na tomada da vila de Nambuangongo (1961), no Norte de Angola, e comandado uma companhia de Cavalaria na Guiné (1965), que recebeu 11 cruzes de guerra e cinco prémios Governador da Guiné. Foi ainda instrutor do primeiro curso de Rangers no Centro de Instrução de Operações Especiais, entre outras funções.

Após a reforma antecipada da vida militar, em virtude de se ter tornado deficiente das Forças Armadas, o Coronel Manuel Barão da Cunha desenvolveu uma carreira literária com inúmeras obras publicadas dedicadas, sobretudo, a temas relacionados com a vida militar, nos quais dá a sua perspectiva humanista sobre alguns dos episódios que protagonizou, tendo ainda colaborado com várias publicações e órgãos de Comunicação Social e participado em diversos livros conjuntamente com outros autores.

Foto: Paulo Rodrigues

Desde 2009, coordenou, em regime de voluntariado, o programa ‘Fim do Império’ – que integra uma colecção literária com mais de 30 títulos publicados -, com o envolvimento da Câmara Municipal de Oeiras (CMO), Liga dos Combatentes e Comissão Portuguesa de História Militar. Este programa tem promovido tertúlias em Oeiras, Lisboa, Porto e outras localidades de Norte a Sul de Portugal, sendo que no total já foram realizados cerca de 200 encontros. Da sua vida civil, faz também parte uma passagem pela CMO, como assessor principal.

Aproveitando as comemorações do 47.º aniversário da Revolução dos Cravos, o jornal ‘O Correio da Linha’ não quis deixar passar a oportunidade de entrevistar o Coronel Manuel Barão da Silva sobre estas e outras temáticas relacionadas com o passado e o presente do País num momento particularmente difícil marcado pela crise sanitária que atravessamos, caracterizado pela imposição de restrições e contingências que vieram alterar substancialmente os nossos hábitos de vida, nomeadamente a liberdade com que nos movimentávamos.

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – As polémicas surgidas em torno das comemorações do 25 de Abril fazem sentido?

Manuel Barão da Cunha (MBC) – É normal que nem todos pensem da mesma maneira, nomeadamente quanto a factos históricos.

“FINAL DA GUERRA DEMOROU DEMASIADO TEMPO”

CL – O que representou para si a Revolução de Abril? 

MBC – Talvez o mais importante tenha sido o final de uma guerra que demorou demasiado tempo. Teve início em Luanda (Angola) em 4 de Fevereiro de 1961, e eu estava lá, e acabou só em 11 de Novembro de 1975, com a independência de Angola. Embora se costume referir apenas 13 anos de guerra, houve baixas entre 25 de Abril de 1974 e 11 Novembro de 1975.

Os nossos líderes políticos não quiseram e/ou não souberam negociar a paz, nomeadamente o ditador Oliveira Salazar, que teve a crueldade e o desplante de enviar um telegrama para o nosso governador-geral em Goa, em Dezembro de 1961, afirmando que só aceitaria “soldados ou marinheiros vitoriosos ou mortos”, muito diferente da conduta do líder israelita na “Guerra dos Seis Dias”, que usava o lema “Follow me” (Sigam-me)…

CL – Qual a memória mais marcante que guarda da Guerra no Ultramar?

MBC – O sentimento é idêntico ao referido na questão anterior, por considerar como consequência mais importante do golpe militar de 25 de Abril de 1974 o ter possibilitado o fim da guerra. Ou seja, alguns militares fizeram o que cabia aos políticos.

Obviamente que nem tudo foi perfeito, como ao longo de toda a História, mas outra consequência relevante, para mim, foi o facto de nos restituírem a liberdade de expressão e eu, como autor, tive, infelizmente, muitas razões de queixa nesse âmbito, quer antes de 25 de Abril, quer mesmo em 1975, tendo chegado mesmo a deslocar-me a Espanha e França, para tentar reeditar o meu livro ‘Radiografia Militar’, boicotado em Maio de 1975 por ‘revolucionários’ incoerentes… Cheguei a ser entrevistado por órgãos de comunicação social de Espanha, França, Alemanha e Inglaterra, em contraste com o silêncio reinante por cá.

CL – O que significou para si a vida militar? Foi o prosseguir de uma tradição familiar?

MBC – Penso que fui um militar ‘civilizado’, servindo Portugal, como militar, entre 1955 e 1973, e, como civil, entre 1974 e 2007. Como militar, marcou-me mais a vivência relacionada com a guerra em África, tendo sido condecorado com a medalha da Cruz de Guerra e ficado deficiente, com 46% de incapacidade. Na vida civil, marcou-me ter trabalhado na Rádio Difusão Portuguesa (1976/1977); ter sido o 1.º director da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa (1989/1992); e ter sido assessor principal na Câmara Municipal de Oeiras (1993/2007) e coordenador da Livraria/Galeria Verney, agraciado com duas medalhas municipais de bons serviços Grau Ouro.

CL – Tal como acontecia no passado, deveria manter-se o Serviço Militar Obrigatório?

MBC – Oportunamente, o Professor Adriano Moreira, na Livraria Municipal Verney, em Oeiras, referiu que houve três factos importantes que marcaram a nossa sociedade no final do século XX, incluindo o fim do Serviço Militar Obrigatório, que ajudou à alfabetização, a conseguir melhores empregos e a incutir valores…

CL – Os portugueses estão mais ou menos patrióticos?

MBC – Não é fácil dar uma resposta objectiva e generalizada. Pessoalmente, sinto-me desconfortável pelo que considero abuso de inclusão de estrangeirismos evitáveis na nossa comunicação e pelo abuso de produtos estrangeiros nos supermercados, dando eu preferência, normalmente, a expressões e a produtos portugueses.

CL – A Democracia e a Liberdade estão mais asseguradas, ou mais ameaçadas?

MBC – Vivi em Portugal, entre 1938 e 25 de Abril de 1974, sem democracia, nem liberdade de expressão, o que se prolongou, infelizmente, até 25 de Novembro de 1975, chegando a ter um livro apreendido no designado Período Revolucionário em Curso. Tratou-se de ‘Radiografia Militar’, hoje disponível noutra versão, ‘Radiografia Militar e os 4 DDDD?’.

“DESCOLONIZAÇÃO DEIXOU MUITO A DESEJAR”

CL – Portugal deve orgulhar-se da sua Descolonização?

MBC – Trata-se de uma questão pouco pacífica, na minha opinião. Pessoalmente, julgo que deixou muito a desejar, embora possa ter sido a possível, em certas ocasiões. Talvez a questão seja mais abrangente, se considerarmos, como o general Ramalho Eanes, que os Militares ultrapassaram a sua missão principal, a de darem tempo aos Políticos para terminarem a guerra, chegando a assegurar, por exemplo, na Guiné, a maioria do ensino, da medicina e das obras públicas. 

CL – Há quem alegue que o Confinamento decretado pelos governos, um pouco por todo o Mundo, foi aproveitado para limitar a liberdade dos cidadãos, constituindo uma ameaça para a Democracia. O que pensa disto?

MBC – Penso que a liberdade tem como contraponto a responsabilidade.

CL – Sendo um autor reconhecido, com vários prémios conquistados ao longo da sua carreira literária, tem alguma obra para editar, ou que gostasse de publicar?  

MBC – As minhas últimas edições foram proporcionadas pela Câmara Municipal de Oeiras e pelo seu presidente dr. Isaltino Morais, que combateu em Angola, antes de combater por nós, em Oeiras, sendo o último título, ‘O Homem Sonha?’, inspirado em Fernando Pessoa, homenageado, oportunamente, na Livraria Verney. Assim, a obra poderá continuar a nascer ou a reeditar, consoante a eventual procura de leitores.

CL – Como vê o facto de o processo de vacinação estar a ser conduzido por um militar? Os civis não têm capacidade para o poder fazer?

MBC – Como referi, considero-me ‘um militar civilizado’. Talvez o almirante também o seja e o mais importante é que seja cumprida mais esta difícil missão, o que, pelo menos em Oeiras, parece estar a ser… e ‘siga a Marinha’. 

CL – Os militares estão a perder poder em Portugal? São devidamente reconhecidos pela Sociedade Civil?

MBC – Penso que parte da minha geração deu um contributo válido e oportuno no final do nosso Império e na revolução com que terminou, incluindo nas datas históricas de 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975. Se não se considerarem devidamente reconhecidos, talvez possam recordar o padre António Vieira que, oportunamente, parece ter referido que fizemos a nossa obrigação “e a Pátria o costume…” 

CL – Qual o seu sonho para Portugal? 

MBC – Que haja cada vez mais atenção aos outros, esperança, paz e saúde.

CL – Os portugueses têm orgulho no seu País?

MBC – Penso que uns terão e outros talvez não, mas somos dos países mais antigos da Europa e tivemos o império ultramarino mais longo. 

CL – Como explicaria às gerações mais novas o que se passou em Abril de 1974?

MBC – Penso que dava para um livro… Há dias perguntaram, na Televisão, a alguém, se conhecia Otelo Saraiva de Carvalho, o comandante do golpe militar, e não conhecia… Há poucos anos, fui convidado a dar uma aula na escola de uma neta e perguntei se sabiam quem era o general Ramalho Eanes e também ninguém sabia…

TÍTULOS EM DESTAQUE

Filho de um militar, o alferes piloto-aviador Francisco Barão da Cunha, falecido em 1939, com apenas 26 anos de idade, vítima de um desastre de aviação, após ter fundado a ‘Revista do Ar’, o Coronel Manuel Barão da Cunha conta com várias obras publicadas. Entre os títulos de que é autor, figura o livro ’30 Anos do 25 de Abril’ (Casa das Letras, colecção ‘Artes e Ideias’, 2005), com a colaboração dos coronéis Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho e Vítor Alves, entre outros. 

Foto: Paulo Rodrigues

Merecem igualmente referência: ‘A Flor e a Guerra’ (Parceria A. M. Pereira, 1974), ‘Na 23.ª Hora do MFA’ (Edição de autor, 1975), ‘Radiografia Militar’ (Editorial O Século, 1975), ‘Os Párias e os Outros’ (Livraria Internacional, 1976), ‘Tempo Africano’ (DG Edições, 2010), ‘Radiografia Militar e os 4 DDDD?’ (Âncora Editora, 2015), ’25 de Novembro’ (Âncora Editora, 2016), ‘Longas Horas do Tempo Africano’ (2019) e ‘O Homem Sonha?’ (2020), sendo que estas duas últimas obras são edições da Câmara Municipal de Oeiras.

Foto: Paulo Rodrigues

Autor: Luís Curado

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