Viveiros em ruínas são um perigo no Cabo Raso

Entre a turística vila de Cascais e o extenso areal da praia do Guincho, junto à Estrada Nacional 247, nas proximidades do Farol do Cabo Raso, instalado no Forte de São Brás de Sanxete, encontram-se as ruínas de inúmeros viveiros de marisco que ali foram construídos com o objectivo de criar e engordar crustáceos destinados à exportação e também a fornecer os muitos restaurantes da região especializados na confecção destas iguarias do mar. Ao longo das últimas décadas, o tempo foi-se encarregando de ditar as suas regras e a degradação acentuou-se. 

A quase totalidade destas estruturas construídas com ferro e alvenaria junto às arribas estão agora inoperacionais. Em avançado estado de ruína, a maioria já colapsada ou a colapsar, constituem um perigo para quem ali passeia, muitas vezes turistas que não conhecem aquela zona de viveiros de marisco, igualmente muito frequentada por pescadores desportivos. A força das marés, a corrosão causada pelo passar dos anos e a falta de manutenção ditada pelo abandono da actividade provocaram estragos irreparáveis. 

Integrados numa paisagem de arribas desenhadas pelos caprichos de um mar agitado e com forte rebentação junto à costa, os viveiros do Cabo Raso foram construídos para dar resposta a uma procura crescente dos apreciadores de marisco que os degustavam e continuam a degustar nos inúmeros restaurantes da chamada Costa do Sol. Entretanto, a quase totalidade destes viveiros foi abandonada pelos proprietários, que passaram a recorrer a outros meios para assegurar a frescura dos crustáceos que comercializam.

Foto: Paulo Rodrigues

SITUAÇÃO DE DEGRADAÇÃO POTENCIA RISCOS

A situação de abandono e o consequente processo de degradação das construções encavalitadas nas rochas seguiu o seu rumo até ao estado actual em que se encontram e que causa inquietação junto de quem conhece a zona e verifica a falta de medidas para vedar o acesso às estruturas em ruínas, ao interior das quais se consegue aceder facilmente. Ferros retorcidos e detritos das construções em colapso podem facilmente transformar-se em armadilhas perigosas para os mais incautos. 

De acordo com explicação avançada pela Capitania do Porto de Cascais (CPC), “a exploração dos estabelecimentos de culturas marinhas e conexos”, como é o caso dos viveiros de marisco, “esteve, até 2017, sujeita a licenciamento por parte da Direcção-Geral dos Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos – DGRM (ex-Direcção-Geral das Pescas), nos termos do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 383/98, de 27 de Novembro”, sendo que, “na sequência deste licenciamento, a Capitania autorizava o exercício da actividade nos precisos termos do licenciamento”. 

Precisa ainda a CPC, que “em 2017, com a publicação do Decreto-Lei n.º 40/2017, de 4 de Abril, o licenciamento desta actividade passou a ser efectuado de forma desmaterializada no Balcão do Empreendedor, sendo, para o efeito, entidades coordenadoras a DGRM e o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, I.P., nos termos do artigo 4.º daquele diploma”.

O facto de existirem junto ao Farol do Cabo Raso uma série de estruturas de antigos viveiros de marisco em avançado estado de ruína, que constituem um perigo para quem circula no local, merece por parte da CPC o seguinte comentário: “Relativamente à questão relativa ao estado em que se encontram os referidos estabelecimentos, informa-se que é para nós desconhecida, uma vez não ter sido a Capitania a licenciar os mesmos. No entanto, é de informar que, nos termos do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março, estão cometidas competências diversas aos inspectores das pescas quanto a estes estabelecimentos de culturas marinhas”.

Foto: Paulo Rodrigues

INTERVENÇÃO PREVISTA AO ABRIGO DO PLANO DE ORDENAMENTO DA ORLA COSTEIRA

Já em 2003, de acordo com o estipulado no Artigo 82.º do Regulamento do Plano de Ordenamento da Orla Costeira, no que respeitava à Unidade Operativa de Planeamento e Gestão referente ao Troço da Costa Guincho-Guia, estava previsto um projecto de requalificação e valorização ambiental envolvendo a Câmara Municipal de Cascais (CMC), destinado a cumprir vários objectivos, entre os quais a requalificação e ordenamento das actividades associadas aos viveiros de marisco e pesqueiros, bem como a demolição de viveiros desactivados.

Volvidos 17 anos, muitas destas construções inoperacionais continuam por demolir. Contactados os serviços da CMC para obter informações sobre o destino a dar estas estruturas, nomeadamente se a autarquia está a acompanhar a situação e/ou está a ser equacionada alguma intervenção junto ao Cabo Raso para dotar aquela zona de maior segurança relativamente às ruínas ali existentes, a autarquia recusa a ideia de que os viveiros de marisco tenham sido abandonados, apesar do seu avançado estado de degradação e ruína. 

“São algumas as zonas de antigos viveiros existentes no Domínio Público Marítimo do município de Cascais que testemunham o cultivo centenário de espécies marinhas em aquacultura. A degradação destas estruturas deve-se em boa parte ao abandono da actividade primária e da sua exposição ao meio marítimo que é hostil ao modo como estes foram edificados. Não existe um abandono destas estruturas. Em rigor, aquelas que não estão activas para produção local, são ‘maternidades’ de espécies que estão a ser monitorizadas e avaliadas por equipas de biologia marinha, como aquela que é dinamizada pelo Município no âmbito do Aquasig III”, Carta de Sensibilidade e Potencialidades da Zona Costeira de Cascais, cujo programa de monitorização teve início a 13 de Dezembro de 2007.

“No caso concreto dos viveiros que estão próximos do Cabo Raso, a par desta monitorização, está a ser desenvolvido um projecto de viabilidade económica através de uma ‘start up’ sediada na DNA Cascais com o intuito da sua recuperação para produção de espécies que serão utilizadas na Biotecnologia Azul e Biomédica”, refere a CMC. “Nesta fase, aguardamos os desenvolvimentos do promotor junto dos organismos de tutela para que naturalmente o Município também possa apreciar o projecto tendo em conta a recuperação e valorização destes antigos viveiros, desenvolvimento de uma tecnologia marinha limpa e em linha com os nossos objectivos para o desenvolvimento sustentável”, é adiantado.

MODERNIZAÇÃO TROUXE VENTOS DE MUDANÇA

Alexandre Ramos, dono do restaurante Furnas do Guincho, onde o marisco fresco sempre fez parte da ementa da casa, conhece bem o processo de modernização que levou à desactivação dos viveiros de marisco do Cabo Raso. “Os viveiros começaram a ser abandonadas porque os mariscos são caros e já não se justifica que cada estabelecimento tenha o seu viveiro nos moldes em que funcionavam antigamente”, começa por explicar o empresário, sublinhando que os restaurantes “agora têm aquários que servem a mesma função e são, ao mesmo tempo, decorativos”. 

Ao contrário do que aconteceu com outros estabelecimentos da região de Cascais, o restaurante Furnas do Guincho nunca chegou a ter qualquer viveiro de marisco na zona do Cabo Raso. “O restaurante sempre teve viveiros próprios nas suas instalações. Chama-se o Viveiro da Boa União e situa-se na Furna do Cavalo”, assinala o proprietário. Contudo, o empresário da restauração é da opinião que “talvez fizesse sentido manter uma ou duas estruturas para que os mais jovens tivessem conhecimento do processo de trabalho dos viveiros de antigamente”. Recordações que hoje são sombras distantes de outros tempos.

Conhecedor da região, Alexandre Ramos não pode deixar de constatar o processo de degradação que tem levado a maioria dos viveiros do Cabo Raso ao estado de total ruína. Na sua opinião, “pelo abandono a que foram sujeitos, e no estado de degradação em que se encontram, deviam ser destruídos para preservar o Ambiente”. Porém, o empresário gostaria de concretizar um projecto que tem em mente. “Tenho em ideia reconstruir, para fins mais ou menos turísticos, um dos viveiros sendo ainda um quase segredo o local”, confessa sem querer levantar muito o véu com que ainda esconde o seu projecto.

Foto: Paulo Rodrigues

REQUALIFICAR E APROVEITAR POTENCIAL TURÍSTICO

Outro profundo conhecedor da história dos viveiros do Cabo Raso é António Muchaxo, proprietário da conhecida Estalagem/Hotel Muchaxo, que recorda a época de maior expansão deste tipo de construções. “Na década de 1940 começaram a aparecer os primeiros restaurantes na zona do Guincho. Com o seu aparecimento começaram também a surgir os viveiros. O primeiro a ser construído foi o do João Faroleiro, que se situava onde é hoje a piscina do Arriba”, lembra o hoteleiro, que assistiu também ao processo de abandono destas estruturas, a partir da década de 1970, “devido à quebra de venda de mariscos”. 

António Muchaxo recorda que o icónico estabelecimento que dirige junto ao extenso areal da Praia do Guincho chegou a ter um viveiro de marisco na zona, que acabou por “entregar em boas condições à Direcção-Geral dos Portos”. Na sua opinião, a questão de preservar alguns destes viveiros para memória futura não se coloca. Em vez disso, defende que “era importante identificar os pesqueiros na zona, como acontecia antigamente” e lança a ideia de que “a câmara deveria requalificar e aproveitar o potencial turístico do local em combinação com a ciclovia” que existe junto à EN 247. 

UM POUCO DE HISTÓRIA

A instalação de depósitos e viveiros para crustáceos na região de Cascais já é referida em meados do século XIX. Estas estruturas foram sendo construídas em áreas concessionadas em espaços de Domínio Público Marítimo utilizando o fluxo das marés com o objectivo de criar e alimentar crustáceos, sobretudo lagostas, lavagantes e santolas, apanhados na região. O interesse por esta actividade associada à pesca foi incentivada pela procura que estas espécies registavam nos mercados.

Ao contrário do que acontecia em outros países, onde a engorda dos crustáceos era feita em viveiros permanentes, em Portugal a maioria dos depósitos eram estruturas provisórias construídos sobretudo com ripados de madeira em locais mais abrigados da costa. Foi preciso esperar até ao final dos anos 1800/princípios dos anos 1900 para as autoridades começarem a definir regras de instalação e construção que possibilitaram um desenvolvimento mais sustentado da actividade.

Ao longo do século XX, estas construções foram sendo dotadas com sistemas de conservação e higienização que permitiram um salto qualitativo relevante. Com o aumento da procura, os viveiros instalados na zona do Cabo Raso foram aumentando de número e dimensão. Inicialmente construções concebidas simplesmente para deixar entrar e sair as águas das marés, eram edificadas em madeira, ferro e alvenaria. Com o tempo, acabaram por adquirir características mais permanentes.

Além da exportação, os crustáceos criados e engordados nos viveiros eram também vendidos nos restaurantes da Linha de Cascais, muitos dos quais possuíam as suas próprias concessões dotadas de sistemas de circulação de água abertos. Em grande actividade sobretudo entre os anos 1950 e 1970, os viveiros de marisco do cabo Raso vieram a ser gradualmente abandonados, trocados por sistemas mais modernos e eficazes instalados em alguns casos dentro dos edifícios dos próprios restaurantes.  

Em Dezembro de 1972, o naufrágio junto ao Cabo Raso do cargueiro dinamarquês ‘Sea Star’, um navio de 980 toneladas que se dirigia para o porto de Lisboa com um carregamento de peças para automóvel a bordo, causou sérios estragos nos viveiros de marisco instalados na zona em torno do Forte de São Brás de Sanxete. Os derrames de combustível e de óleo resultantes deste desastre marítimo e ambiental provocaram a poluição de toda a região e deram um rude golpe no futuro dos viveiros ali instalados.

Foto: Paulo Rodrigues

Autor: Luís Curado

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