“É muito complicado ser bailarino em Portugal”

A Dança sempre foi a sua grande paixão. Desde cedo, Ana Mangericão procurou obter a formação necessária para alcançar um nível de excelência. Estudou em Inglaterra e assumiu ainda muito jovem o cargo de Directora do Departamento de Dança no Ministério de Educação e Cultura, em Angola, sua terra-Natal. Em 1983, apostou num projecto capaz de alimentar o sonho de uma vida ao abrir a Escola de Dança Ana Mangericão (EDAM) num novo espaço em Carcavelos, que viria a ser substituído, em 1998, por novas instalações em São Domingos de Rana, construídas de raiz, sob sua orientação, para o ensino da Dança. 

Aos 63 anos, esta responsável pela promoção da Dança no programa educativo dos jovens, que já mereceu o reconhecimento do Ministério da Educação, mantém o sonho bem vivo. A EDAM é considerada uma referência na formação artística dos jovens, em especial na Dança Clássica. Os seus alunos têm actuado com mérito em muitos palcos do País e não só, sendo que a escola já formou várias gerações de artistas. Dos exemplos de carreiras profissionais bem-sucedidas entre os seus ex-alunos, destacam-se os casos das actrizes Daniela Ruah, Helena Montez e Madalena Alberto e das bailarinas Brígida Neves e Margarida Macieira.

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Que momentos da sua carreira recorda com maior prazer?

Ana Mangericão (AM)– O reconhecimento do ensino ministrado na EDAM, pelo Ministério de Educação; o reconhecimento da boa formação pessoal e técnico-artística de cada aluno que prossegue os seus estudos na Arte – Dança, Teatro e Música; a edificação da primeira escola construída de raiz, no País, para o ensino da Dança (escola onde actualmente nos encontramos); e, ultimamente, a componente técnica do Curso Profissional de Intérprete de Dança Contemporânea, aberta em parceria com o Agrupamento de Escolas da Parede e a Câmara Municipal de Cascais. Todos eles são marcos muito importantes de reconhecimento, por parte de entidades estatais e comunidade envolventes, de todo o esforço e empenho que ao longo de mais de 40 anos foram dedicados à formação pessoal e artística dos jovens; são, também, um marco importante no que diz respeito à evolução do ensino da Dança em Portugal.

É com orgulho que hoje posso afirmar que a EDAM ministra o ensino da Dança, sendo reconhecida pelo seu valor sociocultural, a todos as faixas etárias, desde o Pré-Escolar, passando pelo 1.º/2.º/3.º Ciclos e Ensino Secundário (até ao 12º ano), possibilitando aos seus alunos o prosseguimento de estudos de nível Superior.

CL – O que significa a Dança para si?

AM– A Dança é a uma forma de Arte que contribui para uma educação que integra as faculdades senso-motoras, intelectuais, criativas e que possibilita relações mais dinâmicas e frutíferas entre a formação do indivíduo, a Cultura e a Arte.

CL – A Dança tem o apoio que merece em Portugal?

AM – O “merecimento” é uma palavra ingrata para clarificar o apoio que a Dança granjeia em Portugal. No entanto, considero que actualmente estão a ser empreendidos e aplicados alguns projectos na área de apoio à formação consciencializada que garantem a segurança e a qualidade do ensino da Dança.

Esta formação exige ainda que, de igual modo, haja um empenho de todas as entidades para que se garanta a existência de professores qualificados e zelosos da sua formação contínua; e que existam companhias e grupos de dança com qualidade técnico-artística que garantam um prosseguimento a nível profissional a todos os alunos que se formam e que estes sejam acarinhados por um público que se encontra, a meu ver, sedento de Dança.

“JOVENS MERECEM MELHOR ENSINO QUE POSSAMOS OFERECER”

CL – Como surgiu a necessidade de criar a Escola de Dança?

AM– Pela minha forma de Ser e de Estar e por considerar que a formação e o desenvolvimento de crianças e jovens merecem o melhor tipo de ensino que lhes possamos oferecer, não concebia que o trabalho que efectuava não possuísse esse rigor e que não estivesse inserido numa rede escolar reconhecida e creditada, como é disso exemplo o Ministério da Educação. Assim, os requisitos por mim exigidos para o desenvolvimento deste projecto envolveram esta tomada de decisão e implicaram por si só a criação da EDAM nos moldes que hoje possui.

CL – Quais os objectivos deste estabelecimento de ensino?

AM– Assim como se encontram estabelecidos no Projeto Educativo da EDAM, os objectivos deste estabelecimento de ensino prendem-se com a necessidade de ministrar uma formação socio-artística completa, que implique o respeito por si e pelo outro, e que garanta a todas as crianças e jovens o desenvolvimento de capacidades, como a resiliência, que lhes possibilitarão o cumprimento de todos os seus objectivos académicos e, em última análise, a concretização de todos os seus objectivos de vida.

CL – Qual a importância da Dança na formação educativa dos jovens?

AM– A meu ver, a Dança é um veículo importante para a expressão da personalidade, das emoções e da criatividade que permite o desenvolvimento do carácter e do equilíbrio emocional. A Dança possibilita ainda o desenvolvimento de estratégias que capacitam o indivíduo para o trabalho em grupo, bem como o capacitam para lidar de forma harmoniosa com as suas frustrações e com as realidades do Eu e do Outro.

CL – Que características fundamentais deve ter um/uma bailarino/a?

AM– Penso que um bailarino profissional, para ser bem-sucedido nos tempos que correm, em que quase não existem grupos de dança ou companhias em Portugal, deve possuir, em primeiro lugar, uma formação técnico-artística de excelência e, em segundo lugar, ter capacidade de empreendedorismo para conseguir implementar e apresentar os seus projectos a título individual. Deve, também, ter conhecimentos diversificados na área de gestão de projectos para conseguir gerir a sua carreira.

CL – Pode citar alguns exemplos de artistas bem-sucedidos que tenham passado pela EDAM?

AM– Brígida Neves (trabalha como bailarina profissional no estrangeiro), Daniela Ruah (trabalha na indústria Televisiva no estrangeiro e em Portugal), Helena Montez (trabalha como actriz), Madalena Alberto (trabalha em Teatro Musical no estrangeiro e em Portugal) e Margarida Macieira (trabalha como bailarina e coreógrafa no estrangeiro).

CL – É complicado ser bailarino em Portugal?

AM– Considero que é muito complicado ser bailarino em Portugal. O reduzido número de companhias, a falta de financiamento a projectos artísticos na área da Dança e o elevado nível de competitividade existente numa carreira de si muito curta fazem com que os jovens que escolhem a Dança como o seu projecto de vida não tenham em Portugal a estabilidade emocional e financeira necessária para a sua subsistência.

PROJECTO DE VIDA QUE IMPLICA SACRIFÍCIOS E MUITA PERSISTÊNCIA

CL – Que conselhos daria a um jovem que pretenda desenvolver a sua vida em torno na Dança? 

AM– Julgo que o primeiro conselho a dar a um jovem que pretenda desenvolver a sua vida em torno da Dança deva ser para que ele se questione acerca da verdadeira motivação interior para o prosseguimento deste projecto pessoal. Este é um projecto de vida que implica diversos sacrifícios e muita persistência. Assim, o segundo conselho que me parece importante deixar a todos os jovens que tenham a Dança, ou a Arte, como seu objectivo de vida é o de que sejam organizados, metódicos, perseverantes e muito exigentes consigo próprios, tanto a nível físico como emocional. 

CL – Qual o balanço que faz destes mais de 40 anos de existência da EDAM?

AM– Considero que o percurso realizado pela comunidade da EDAM ao longo destes mais de 40 anos de existência tem primado pelo desenvolvimento de um trabalho honesto e de qualidade que permitiu incutir, a diversas crianças e jovens, valores importantes que contribuíram para o seu desenvolvimento socio-artístico. Quero acreditar que a passagem destes alunos pela EDAM lhes tenha possibilitado a obtenção das ferramentas correctas para o desenvolvimento de um percurso académico de excelência, bem como lhes tenha possibilitado adquirir as ferramentas necessárias para que, no futuro, venham a ser reconhecidos como cidadãos correctos e conscientes dos seus deveres e direitos. A passagem pela EDAM possibilita ainda a criação e formação de um público crítico e exigente.

CL – Quais as maiores dificuldades que a EDAM enfrenta no exercício da sua actividade?

AM– A formação especializada em Dança implica uma carga horária de aulas de técnicas de dança e ensaios muito elevada sendo, por isso, a gestão do tempo para articulação entre o ensino académico e o ensino artístico é uma das maiores dificuldades que a EDAM enfrenta.

CL – Qual o maior orgulho que sente enquanto responsável por este projecto?

AM– É saber que, hoje em dia, o grande esforço realizado no empreendimento deste projecto foi totalmente compensatório tendo em vista os objectivos actualmente alcançados. Ser diferente, exigente, resiliente e, muitas vezes, incompreendida numa área tão difícil como a do Ensino da Dança, compensou. 

CL – Quantos alunos tem a escola?

AM– De momento, no ano lectivo de 2019/2020, temos cerca de 200 alunos.

CL – Como planeia o futuro da EDAM?

AM– Espero sinceramente que o futuro da EDAM passe por manter todos os valores que foram o mote da sua formação e que têm sido um elemento diferenciador num mercado sempre em crescimento; que mantenha o seu nível de exigência e de qualidade de formação e ensino.

PERFIL 

Ana Mangericão nasceu a 10 de Março de 1956, em Angola. Começou como assistente, em 1964, da Professora Helena Coelho na Academia de Bailado de Angola, onde obteve uma bolsa de estudo, no âmbito da formação de professores, para Inglaterra. Esteve, inicialmente, sete meses na Hockaday School of Dance, em Swindon, para concretizar os seus exames como aluna, e posteriormente iniciar os estudos para a graduação no ensino.

Em 1975 regressou a Angola onde seria nomeada para o cargo de Directora do Departamento de Dança no Ministério de Educação e Cultura. Foi nesta altura que iniciou a Escola de Dança, nas instalações da Escola de Música de Luanda. Dois anos mais tarde, reiniciou os estudos em Inglaterra. Em Dezembro de 1977 começou a leccionar na Sociedade Recreativa e Musical de Carcavelos (SRMC) e mais tarde no Dramático de Cascais.

Em 1978, a pedido do Director do Parnaso, no Porto, reestruturou esta escola de Dança onde permaneceu até 1982, viajando semanalmente entre Carcavelos e Porto. Em 1983, abriu a Escola de Dança Ana Mangericão (EDAM) num novo espaço em Carcavelos. Volvidos três anos, obteve reconhecimento do Ministério da Educação, no âmbito do Ensino Particular e Cooperativo, assumindo a Direcção Pedagógica da EDAM. Em 1998, inaugurou as novas instalações da escola, construídas de raiz sob a sua direcção.

Ao longo dos anos, Ana Mangericão foi convidada a participar na coadjuvação de coreografias com várias entidades e em vários projectos em Inglaterra, desde cursos de aperfeiçoamento, a espectáculos com várias escolas e trabalhos com músicas efectuadas por alunos da Menuhin School of Music e coreografadas por alguns coreógrafos de renome. Manteve também intercâmbios com o Bird College e RAD Surrey Region. Foi também neste período que se tornou examinadora de clássico, da organização Dance Arts Internacional (DAI), durante os meses de férias.

Como Directora da EDAM, Ana Mangericão sempre fomentou a formação do público e o enriquecimento artístico dos alunos e professores da EDAM, colaborando com várias entidades oficiais e particulares. Ao longo da sua formação, procurou fazer cursos de reciclagem, das várias técnicas que a escola lecciona, mantendo-se sempre actualizada em relação aos novos programas em vigor.

A EDAM tem desenvolvido, ao longo dos anos, protocolos com entidades públicas, a fim de proporcionar/acompanhar estágios/mestrados e doutoramentos, como por exemplo com a Faculdade de Motricidade Humana, a Escola Superior de Educação e o ISPA em Psicologia Educacional. Tem realizado ainda projectos de Arte e formação com as Câmaras Municipais de Cascais e Ourique e com escolas do concelho de Cascais.

CURSOS MINISTRADOS NA EDAM

Pré-Escolar (3 aos 5 anos de idade) – Iniciação ao Movimento e Introdução às Técnicas de Dança Clássica e Moderno, numa componente lúdica;

1º Ciclo (6 aos 9 anos) – Ensino Artístico Especializado de Dança – Técnica de Dança Clássica e Técnica de Dança Moderna (sem articulação);

2º e 3º Ciclos (10 aos 14 anos) – Ensino Especializado da Dança – Técnica de Dança Clássica e Moderna, Expressão Criativa e Práticas Complementares de Dança (em articulação com vários agrupamentos de escolas públicas e privadas);

Ensino Secundário (15 aos 17 anos) – Curso Profissional de Intérprete de Dança Contemporânea – Técnica de Dança Clássica e Contemporânea, Oficinas de Dança/Voz e PBT – Progressive Ballet Technique (componente Técnica, sendo as componentes sociocultural e científicas ministradas no Agrupamento de Escolas da Parede).

Para além destes cursos, a EDAM possui ainda o ‘Projecto Companhia de Dança Jovem EDAM’ composto por alunos a partir dos 15 anos de idade, com formação em Dança Clássica e Moderna/Contemporânea. Este projecto tem como principal objectivo a criação de situações de aprendizagem diferenciadas que favorecem a aquisição de novos conhecimentos e competências, através da realização de aulas de técnica de Dança Clássica e Contemporânea com professores convidados, bem como através da criação/interpretação de peças coreográficas de coreógrafos de renome nacional e internacional, que possuem experiência profissional reconhecida por serem detentores de um elevado grau de especialização na área em que lecionam.

Autor: Luís Curado

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