Manuel Oliveira: “Precisamos de mais pessoas a ajudar”

A Santa Casa da Misericórdia de Sintra (SCMS) está ao lado das famílias mais desfavorecidas desde 1545, data da sua fundação, o que faz com que seja considerada uma das mais antigas e prestigiadas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) do concelho. Quem dela tem precisado conhece bem a instituição criada à imagem da casa-mãe, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, fundada, em 1498, pela Rainha D. Leonor (1458-1525), viúva de D. João II de Portugal (1455-1495).

Desde então, o País viveu inúmeros episódios trágicos, desde o terramoto ocorrido na região de Lisboa em 1755, as invasões francesas, as lutas em torno da Implantação da República, períodos de grande instabilidade que se lhe seguiram, tempos de fome decorrentes de duas guerras mundiais, crises económicas e sociais consequentes, períodos difíceis e desafiadores. A História está repleta de situações que levaram, e levam, quem mais precisa a recorrer à SCMS para mitigar dificuldades.

Ontem, como hoje, em proporções diferentes, os desequilíbrios sociais a isso têm obrigado e os apoios à comunidade continuam a fazer toda a diferença. O jornal ‘O Correio da Linha’ falou com Manuel Costa e Oliveira, Provedor da SCMS, sobre a realidade actual que a instituição enfrenta, sobre os desafios resultantes da situação vivida em Portugal e, também, no Mundo, num palco global ao qual não somos alheios no momento de acertar estratégias e fixar novos objectivos.

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Quantas pessoas são apoiadas actualmente pela SCMS?

Manuel Oliveira (MO) – A SCMS apoia pessoas e famílias em diversas áreas: Infância, Psicologia, Apoio Domiciliário, Polo Alimentar, Cantina Social, Balneário Social, Pessoas Vulneráveis, Animação e Socialização e outros. Ao todo, falamos de mais de 2.000 pessoas, mas tenhamos a noção que crescemos todos os dias.

CL – Com quantos elementos conta a SCMS nas suas equipas, entre colaboradores assalariados e voluntários?

MO – Contamos com mais de 80 pessoas. Destes, contamos com 12 voluntários que, diga-se em abono da verdade, fazem um excelente trabalho. Quanto aos colaboradores efectivos, temos muitas pessoas muito bem preparadas e muito motivadas, que fazem com que os serviços prestados pela SCMS sejam considerados de elevado nível. Este é para nós um ponto de honra, pois, apesar das dificuldades, não nos afastamos de um serviço de qualidade.

CL – As crises sociais, sanitárias e económicas verificadas nos últimos anos fizeram aumentar os pedidos de ajuda recebidos pela SCMS? Em que medida? As pessoas/famílias em situação de vulnerabilidade social têm vindo a aumentar no concelho?

MO – Sem dúvida que sim, de forma muito evidente. Muitos factores contribuíram para este estado de coisas, cabendo ao impacto da COVID uma enorme responsabilidade. Mas não só! Porque existiram outros factores, como a inflação e o agravamento dos juros dos empréstimos. Presentemente, a crise da habitação agrava muito a situação, atirando inúmeras pessoas e famílias para situações de grande aflição. Não tenho propriamente uma percentagem para quantificar este agravamento verificado na SCMS, mas diria que nada menos que 20 por cento. O agravamento social nos dias de hoje é algo de indesmentível, tenhamos todos essa noção.

“AJUDAS MAIS REQUISITADAS SÃO NO DOMÍNIO DA ALIMENTAÇÃO”

CL – Quais as ajudas mais requisitadas?

MO – As ajudas mais requisitadas são no domínio da alimentação, em que contabilizamos mais de 1.300 pessoas apoiadas. Destas, contamos com muitas crianças e idosos, o que não facilita mesmo nada. Mas temos outros pedidos de ajuda a agravarem-se. As pessoas mais vulneráveis estão a sentir-se muito afectadas. No que respeita aos idosos, são cada vez mais os pedidos para apoio domiciliário. Assim, estas são as ajudas mais requisitadas, que reflectem o agravamento da situação já referido. Naturalmente, identificamos os idosos, as crianças e as pessoas deficientes como os mais carentes das nossas ajudas.

CL – Com que orçamento conta a SCMS para levar a cabo as suas missões?

MO – Que grande questão, à qual responderei com gosto, mas com grande preocupação. Vejamos as coisas assim, que eu refiro como sendo os quatro pilares do nosso orçamento: um primeiro pilar, que é constituído pelas mensalidades que recebemos dos nossos utentes, que são mensalidades quase sempre baixas, pois resultam de um poder económico em via de regra fragilizado, o que se compreende por ser este o segmento da sociedade sintrense com que a SCMS trabalha.

Um segundo pilar, que tem a ver com a contribuição da Segurança Social (SS) para com a SCMS, a qual é significativamente baixa para as nossas necessidades. A este propósito, é sabido e reconhecido, a SS apoia-nos 18% aquém do que deveria fazer. Como resultado, temos que os dois pilares juntos não cobrem os custos destas nossas actividades da Infância e do Idoso, o que nos gera um enorme problema. Se me perguntarem, em termos globais, qual o défice que a SCMS assume em via de regra, responderia meio milhão de euros, ou algo assim.

De seguida, vem um terceiro pilar de recursos para a SCMS, que tem a ver com pessoas, irmãos, amigos e empresas que nos queiram ajudar. Para mim, há que fazer um grande esforço nesta área, que eu diria que pode ser muito a solução para que possamos ter uma Misericórdia mais robusta, com mais estabilidade financeira, portanto mais preparada para ajudar quem mais possa precisar de nós.

Por fim, vem o tal quarto pilar, que tem a ver com negócios que a SCMS possa criar. Neste âmbito, Sintra não tem nada, o que não quer dizer que não possa vir a ter. Um dia, quem sabe. Algo que possa resultar em receitas para a SCMS, que utilizaremos no nosso serviço quotidiano.

CL – Quais as principais necessidades sentidas pela SCMS para desenvolver a sua actividade?

MO – Responderei a dizer que precisamos de mais pessoas a ajudar. Falo de mais irmãos, mais amigos e mais empresas, como antes referi. Mas também mais voluntários e estagiários e, depois, naturalmente, mais colaboradores que venham ajudar em resultado do desejável crescimento da SCMS. De propósito, não referi os sempre necessários, diria imprescindíveis, recursos financeiros, pois acredito que os mesmos resultem das diversas dinâmicas implementadas e a implementar. Tenhamos a noção de que temos de ser capazes de envolver os nossos apoiantes actuais e futuros, num grande abraço emocional, que os leve a apoiar-nos. Sem esta emoção, dificilmente atingiremos os fins em vista.

CL – A SCMS tem contado com a ajuda de várias instituições para reforçar o apoio à população mais necessitada. Com que tipo de instituições?

MO – Sim, sem dúvida que temos recebido apoios muito significativos. Começarei por referir a Câmara Municipal, de quem temos recebido os apoios possíveis e muito importantes. Com uma relação pessoal e institucional de grande impacto, temos trabalhado em conjunto na melhor das cordialidades, com significativos resultados.

Depois, em resultado de uma estratégia muito pensada, temos orgulho em sentir o melhor dos relacionamentos com todas as Paróquias de Sintra, todas as Juntas de Freguesia, Corporações de Bombeiros, Clubes Desportivos e muitas outras entidades com quem temos falado e trabalhado em conjunto. Todos temos o mesmo ADN, como gosto de dizer, ou seja, todos estamos disponíveis para ajudar quem de nós possa precisar.

Guardei para o fim a referência à Associação Empresarial de Sintra, com a qual a SCMS tem um protocolo de cooperação, que tem tido enorme impacto em muitas acções conjuntas. Aliás, são muitas as personalidades da AESintra, começando pelo seu Presidente, que são irmãos da SCMS e ajudam muito, em tudo o que possa estar ao seu alcance. Aliás, reciprocamente, eu próprio sou Presidente da Assembleia Geral da Associação, o que muito me orgulha, e colaboro no Núcleo Social da Associação Empresarial.

Em conclusão, diria que estas parcerias, estes bons entendimentos se preferirmos dizer, são cruciais para o presente da SCMS, sobretudo para o seu futuro, que se deseja de grande desenvolvimento, em prol de tudo e de todos.

CL – Nos últimos anos, tem-se registado um aumento das doações à SCMS, ou, pelo contrário, tem ocorrido um decréscimo das ofertas recebidas?

MO – Temos recebido muitas mais doações, não só em géneros alimentares, como em dinheiro, as mais diversas ajudas, nomeadamente em capital humano. Para se ter uma ideia, no presente mandato, a nossa Misericórdia conta com mais cerca de 50 novos irmãos, o que nos dá uma forte esperança num futuro muito promissor

Gosto de referir o protocolo celebrado com a Mercadona, que diariamente nos doa um conjunto muito assinalável de produtos, onde se contam muita carne e muito peixe, que tanta falta fazem às populações que apoiamos. Um outro exemplo que posso dar tem a ver com uma recolha de alimentos que levámos a cabo num fim-de-semana recente no Pingo Doce, onde assinalámos mais de 800 contribuições em bens alimentares, verdadeiramente notável. Aliás, a SCMS tem recebido o apoio generalizado da maioria dos nossos supermercados, o que muito nos apraz registar.

Por fim, uma realidade que também muito nos agrada tem a ver com o Banco Alimentar, que nos apoia de forma muito significativa de há muitos anos a esta parte e nos ajuda cada vez mais nas suas doações.

“FAZEMOS O QUE COMPETE AOS OUTROS, NÃO NOS CANSANDO”

CL – A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa fez saber, recentemente, que vai reduzir despesas e aumentar receitas, de forma de reverter a actual situação financeira da instituição, que passou de registar lucros a contabilizar prejuízos elevados. O que implicará isso no que à SCMS diz respeito?

MO – A nós, pouco implica, pois somos instituições diferentes, autónomas uma da outra. Mas devo dizer que fica a lição, embora aqui em Sintra já a tenhamos bem-sabida. Temos sim, que aumentar receitas e diminuir custos, o que não é nada fácil como se sabe.

Mas mais, tenhamos a noção que muita coisa se vai agravar, com os níveis de inflação e aumento de juros que por aí estão a vir. Então, como solução, cabe ao Governo fazer o seu papel, apoiando o sector social na justa medida das nossas necessidades. A nós, competirá estarmos atentos à contenção dos custos da nossa actividade, tentando não ‘ferir’ a qualidade dos serviços prestados.

E neste contexto, é bom que se diga o seguinte: a SCMS, todas as Santas Casas, fazemos o que compete ao Estado, à Autarquia e à própria Família. Portanto, é bom que nos ajudem efectivamente, pois fazemos o que compete aos outros, não nos cansando. Mas será muito bom e justo que nos ajudem, de forma suficiente, para nosso bem e para o bem de todos os que servimos, com dedicação e com muito amor.

CL – Quantas crianças frequentam actualmente as creches e jardins de infância da SCMS? Esse número tem vindo a aumentar nos últimos anos?

MO – Actualmente, contamos com 256 crianças e queremos aumentar este número. De facto, esta é uma actividade que muito nos enche de orgulho, até porque são cada vez mais as crianças que precisam de nós. Aqui residem algumas fragilidades, que temos de ajudar a resolver, sempre por bem e plenos de boa vontade. Portanto, sim, este número tem vindo a aumentar e estamos preparados para enfrentar este crescimento, que também nos enche de orgulho.

CL – Como está a decorrer o apoio dado pelo Estado no âmbito da gratuidade concedida a crianças nascidas a partir de 1 de Setembro de 2021 no que respeita a creches do sector social e solidário que têm acordo com a Segurança Social?

MO – Tem corrido muito bem. Consideramos até que se trata de uma contribuição muito interessante para as Famílias, mas também para nós, SCMS. Permite-nos alguma estabilidade financeira e uma boa perspectiva de crescimento, mesmo que nem sempre cubra os custos que temos de enfrentar, questão que tentamos ultrapassar a todo o momento.

CL – Qual o apoio concedido à população mais idosa do concelho de Sintra? Que tipo de serviços são prestados aos idosos?

MO – Trata-se de uma área a que damos toda a atenção, pelo muito respeito que temos à pessoa com mais idade. Aliás, estamos a planear criar um dia a que vamos chamar Dia de Respeito pela Pessoa Idosa, que consideramos muito merecido.

Por estas e outras razões, temos estabelecidos dois programas, a que chamamos: Espaço Capaz, que passa por actividades de Socialização e Animação da Pessoa Idosa, e Boa Companhia, que passa por um conjunto de actividades de lazer. Temos perspectivas de crescimento para ambos os projectos, num concelho tão grande como o nosso, onde inúmeros idosos carecem de apoio da nossa parte. Trata-se de uma área onde queremos crescer de forma muito significativa.

CL – Quantos idosos são apoiados nos seus domicílios?

MO – De momento, atendemos 86 pessoas nos seus domicílios, mas queremos em 2024 chegar aos 120 utentes. Num concelho onde as necessidades são cada vez maiores, estamos a preparar-nos para um crescimento significativo da nossa parte.

CL – Uma das iniciativas lançadas pela SCMS para os seniores é o Espaço Capaz? Pode falar-nos um pouco mais deste programa?

MO – Trata-se de um espaço localizado na Freguesia do Algueirão-Mem Martins, onde desenvolvemos diversas actividades de Animação e Socialização de Pessoas com mais idade. Desde idas ao ginásio ou à piscina, passando por actividades de desenho ou outras, o Espaço Capaz assume-se como algo da maior importância, para o qual desenvolvemos dinâmicas várias. Pensamos em outros locais de outras freguesias para podermos crescer nesta área tão importante.

CL – A SCMS tem algum lar de idosos?

MO – Infelizmente, ainda não temos qualquer lar, o que muito nos desgosta. Porém, temos em preparação e análise uma estrutura com 60 camas, localizada no Algueirão. Estamos a reflectir com todo o cuidado, pois trata-se de um investimento avultado, que tem de ser considerado com toda a atenção. Há muitas pessoas interessadas. Por muito que se defenda o chamado ‘envelhecimento em casa’, um lar será sempre de uma crucial importância, pelo que a SCMS está muito empenhada em o conseguir.

PRINCIPAIS APOSTAS E PROJECTOS FUTUROS

CL – Quais são as principais apostas da SCMS para os próximos anos?

MO – Sem dúvida que continuaremos a servir por bem quem de nós possa precisar. Neste contexto, assumem particular importância para a SCMS os idosos e as crianças, em particular as mais fragilizadas. A área alimentar continuará a assumir importância decisiva na nossa estratégia de apoio, bem como uma significativa população fragilizada também, sendo que muita desta vive sozinha e isolada. Depois, claro que sim, continuaremos a cuidar do domínio da Psicologia e outros apoios, nomeadamente animando e socializando pessoas com mais idade.

No que respeita a apostas novas, temos alguns planos em mente e entre mãos, em particular o projecto denominado Dona Maria, em Almargem do Bispo, onde nos será permitido agilizar novas respostas referentes a idosos e crianças. Mais, está a ser equacionada a possibilidade de ali instalarmos uma Residência de Estudantes, resposta que, como se sabe, tem muita procura.

CL – O que é preciso fazer para ser associado e/ou voluntário da SCMS?

MO – Falamos de assuntos diferentes. Para se ser Irmão, tem que se apresentar uma candidatura à Mesa Administrativa que, após análise e ponderação, será ou não aceite. Esta decisão é feita com todo o cuidado, pois, não podemos esquecer, que a SCMS é uma irmandade que conduz os seus destinos.

Para se ser Amigo, as pessoas também têm que se inscrever, não havendo razões para não serem aceites.

Para ser Voluntário, também se exige uma inscrição, que será seguida de uma entrevista. Passada esta fase da entrevista, encaminha-se o candidato a Voluntário para a actividade desejada e que faça sentido para a nossa Misericórdia.

Em resumo, todos são muito bem-vindos e de todos precisamos muito.

CL – A SCMS assinala este ano o seu 478.º aniversário. Como Provedor, qual a prenda que gostaria que fosse dada à instituição para poder ajudar ainda mais quem mais precisa?

MO – A ’prenda’ que gostaria de receber pode ter a ver com o terceiro pilar que referi antes, ou seja, mais irmãos, amigos e voluntários, para nos ajudarem e incrementarem uma cada vez maior capacidade de resposta para servirmos quem de nós possa precisar. De forma intencional, não referi os recursos financeiros, porque, acredito, os mesmos acabarão por surgir. Naturalmente que, aqui, o Estado e a Autarquia deverão ter uma palavra importante a dizer, reforçando os seus apoios à SCMS na justa medida do que possamos merecer e necessitar.

CL – Como antevê o futuro da instituição?

MO – Antevejo um futuro promissor. Não ignoro que este futuro será cada vez mais difícil, com mais gente a necessitar de nós, mas confio que seremos capazes de ultrapassar estas dificuldades. Fica claro que tem a possibilidade de nos ajudar (já o referi e vou repetir) mais gente, contribuindo com mais apoios. Quem nos rodeia sabe bem o que pode e deve fazer pela sua SCMS. Acredito muito que tudo será assim possível, visto desta forma.

CL – Pretende recandidatar-se ao cargo de provedor para o quadriénio 2023/2026?

MO – Sim, claro, essa é a minha intenção, cabendo aos meus irmãos decidirem se me querem como Provedor, ou não. Faço o meu trabalho com muito orgulho e dedicação e acredito que possa continuar a pugnar por uma SCMS cada vez melhor e a prestar mais e melhores serviços.

Estou acompanhado de bons irmãos na Mesa Administrativa, e fora da mesma, em quem muito confio e que sei que querem continuar. Sendo assim, com muita honra, entusiasmo e orgulho, vamos lá continuar a levar a nossa SCMS até onde ela bem merece, após quase cinco séculos de história e de dedicação aos outros.

Autor: Luís Curado

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