Drogaria Costa: Uma sobrevivente no coração de Cascais

A rua Visconde da Luz e a rua Regimento 19 de Infantaria marcam de forma significativa o centro histórico na baixa de Cascais, actualmente dominado pela restauração, fruto da crescente procura por parte dos turistas que visitam a vila-sede do concelho cascalense. Dos antigos negócios existentes naquelas artérias, poucos sobreviveram para manter a memória de outros tempos. Ao contemplarmos os toldos e placas identificativas dos estabelecimentos em redor somos imediatamente redireccionados para a realidade do sector turístico, principal responsável pelas mudanças operadas. ‘Traditional Portuguese Food’, ‘Craft Beer’, ‘Hot Dog’, ‘Enjoy Cascais’, ‘Authentic Thai Food’ e ‘Handmade in Portugal’ não deixam lugar a dúvidas sobre a nova realidade da vila. É o Turismo que tem ditado as regras da modernidade e alterado a fachada dos estabelecimentos comerciais. As excepções são raras e chamam a atenção para a diferença. Entre elas, destacam-se a imobiliária ‘Agência Vitória’, fundada em 1956, instalada num prédio peculiar, e a muito tradicional ‘Drogaria Costa’, um ‘ex-libris’ local, que sobrevive no andar térreo de um edifício que mostra as mazelas causadas pela passagem dos anos.

Ao entrarmos na Drogaria Costa, somos imediatamente transportados para um mundo completamente diferente daquele que acabámos de deixar no exterior. Parece que fomos teletransportados para o tempo dos nossos avós, para um museu que julgávamos existir apenas nas nossas memórias, mas que ali permanece vivo, existe, é palpável. Os cheiros, as imagens, a curiosidade de descobrir o que ali se encontra, tudo se conjuga para possibilitar uma experiência rara no quotidiano diário em que vivemos, dominado pelas pressas, pelo frenesim e pelo estresse, palavra inventada para nos aproximar do entendimento de que estamos à beira do descontrolo orgânico e psíquico. As imensas prateleiras, armários, tulhas e caixas antigas de transporte de embalagens de margarina Vaqueiro recicladas guardam todo o tipo de produtos, objectos, frascos, bisnagas, pincéis, pregos, ferragens, pentes, tintas, sabonetes, ratoeiras, fios, navalhas, alguidares, peças de autoclismo, cataplanas, tesouras… de tudo um pouco, ou mais ainda. Em frente das três montras do estabelecimento, é difícil resistir à tentação de entrar para descobrir o que mais existe no interior de um espaço tão singular.

Foto: Paulo Rodrigues

Arrumados lado-a-lado, os produtos mais antigos e tradicionais ombreiam com outros mais modernos, dirigidos a um tipo de clientes com outro género de exigências e necessidades. “Temos milhares de produtos distribuídos pela loja toda”, referem os irmãos Joaquim e João José Pires, de 79 e 70 anos respectivamente, actuais gerentes da Drogaria Costa. As salas à volta e os vãos em redor do estabelecimento mostram isso mesmo. Todos os espaços estão literalmente a abarrotar com os mais variados produtos, desde o chão até ao tecto, de onde alguns estão pendurados para os clientes poderem avaliar e/ou descobrir mais facilmente. “Um museu vivo é o que isto é”, alegam os dois irmãos que gostariam de preservar a memória do estabelecimento, não escondendo a tristeza da inevitável chegada de um futuro próximo em que terão de fechar pela última vez a porta da Drogaria, que antes de o ser foi uma cavalariça pertencente a um homem chamado Rodrigues. O edifício guarda, pois, outras memórias resgatadas ao passado que importaria salvaguardar.

Transposta a única porta de entrada na loja, Joaquim e João recebem os clientes com a simpatia e o à-vontade de quem pisa aquele espaço há décadas suficientes para conhecer todos os cantos à casa e desenvolver o saber de bem atender quem por ali aparece, entre clientes de sempre, amigos, e visitantes mais recentes aconselhados em outros estabelecimentos de que poderão encontrar ali o que procuram com afinco. Para os dois gerentes da casa, ambos já reformados, a frase mais difícil de pronunciar, raras vezes usada, é: “Desculpe, mas isso não temos!” É que ali encontra-se de tudo, ou quase tudo. E esta é uma das principais alegrias e satisfações que Joaquim e João se orgulham de alimentar, sensações que ainda não esmoreceram, apesar de verem o seu percurso naquele espaço prestes a chegar ao fim. Por enquanto, estão ali de corpo e alma, “por amor à camisola” que têm vestido ao longo de várias décadas, mais de meio século, quando cruzaram pela primeira vez, também eles, a porta de entrada do estabelecimento. Foi a eles que recorremos para ficar a compreender melhor a história desta casa centenária.

Foto: Paulo Rodrigues

ESTABELECIMENTO COM 132 ANOS DE HISTÓRIA

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Quantos anos tem esta Drogaria? Quando foi inaugurada?

João e Joaquim Pires (JJP) – Esta casa é de 1891. Vai fazer 132 anos no mês de Setembro.

CL – Quem foram os primeiros donos deste estabelecimento?

JJP – O primeiro dono foi uma senhora chamada Teodomira, que, dizem, costumava atender os clientes sentada numa cadeira mantendo todos os produtos, pelo menos aqueles que vendia com mais frequência, ao seu alcance. A seguir, quem tomou conta da loja foram os nossos padrinhos, Virgílio João da Costa e Albertina Conceição Correia da Costa. Foram eles que deram o nome à Drogaria. Mais tarde, a partir de 1965, esteve aqui outro nosso irmão, José Alves Pires, que acabou por acompanhar e substituir estes proprietários. A loja passou para o nosso irmão, que faleceu há cerca de seis anos, e no seguimento disso passámos a ser nós os gerentes do estabelecimento. Contudo, temos 47 e 65 anos de casa.

CL – Quando entraram aqui pela primeira vez?

João Pires – Eu comecei a vir aqui visitar o meu padrinho e o meu irmão, para aí com uns 15/16 anos. Na altura, trabalhava num bar, depois fui para a tropa como paraquedista, entre 1972 e 1975. Fiz 37 meses de tropa. Quando regressei, aconcheguei-me aqui. A minha madrinha fez questão. E o meu irmão também já tinha vindo.

CL – Quando esteve na tropa, chegou a ir para África combater?

João Pires – Não, não fui. Eu não pedi para não ir, porque a minha companhia foi toda, para Moçambique. A minha mãe é que pediu a alguém para eu não ir para o Ultramar. Tive a sorte de não ter ido. Na altura, não era aquilo que eu queria. Eu queria ir, porque a mentalidade era ir defender a Pátria.

CL – E o Sr. Joaquim, também fez tropa?

Joaquim Pires – Sim. Eu fiz a guerra em Angola, onde estive entre 1965 e 1967, como condutor de pesados. Uma vez, desconfiei de um bocado de capim que estava caído na estrada e desviei-me. Acabei por passar ao lado de uma mina que rebentou debaixo de um veículo que vinha atrás de mim. Escapei por pouco.

CL – Os senhores são de Cascais, ou vieram de outra localidade para aqui?

João Pires – Nós somos de Meimoa, uma aldeia do concelho de Penamacor, distrito de Castelo Branco. Eu vim com 13 anos para Cascais.

Joaquim Pires – Eu vim com 14 anos, directamente aqui para a loja. Entretanto, também fiz um intervalo para cumprir o serviço militar. Foi uma grande diferença até nos adaptarmos, não foi fácil. Depois da tropa, regressei aqui à loja.

Foto: Paulo Rodrigues

“HÁ FALTA DE PODER DE COMPRA”

CL – O que mais mudou ao longo da história da Drogaria Costa?

JJP – Antigamente, havia muito movimento. Estavam sempre clientes até à porta. Foram anos dourados. Actualmente, vamos vivendo. A vida mudou muito. A grande mudança em relação a hoje está na falta do poder de compra. As pessoas não têm poder de compra. Felizmente, ainda temos um lote de bons clientes a residir em Cascais, que ainda nos visitam e fazem questão que seja esta loja a servi-los, porque são bem atendidos. Estão sempre a pedir-nos para não fecharmos a Drogaria.

Outra das coisas que mudou foi o cheiro mais intenso que tinham os produtos quando eram vendidos a granel, que agora, pelo facto de serem vendidos já embalados, deixou de se sentir. Agora, o cheiro da loja é muito menos intenso.

CL – Que tipo de clientes têm? Pessoas mais antigas? Mais novas? Turistas?

JJP – Turistas, temos alguns. Não são bem clientes. Os turistas visitam-nos muitas vezes só para visitar o ‘museu’, não é para comprar. Nós, às vezes, por graça, até dizemos que qualquer dia, fazemos como a Livraria Lello, no Porto, que cobra um pagamento à entrada e, depois, se a pessoa adquirir alguma coisa desconta isso no valor da compra. Por vezes, poucas, os turistas lá levam uma cataplana como a que temos exposta na montra. Ou qualquer outra coisa que não exista no país deles. O turista é bom, sempre traz mais pessoas à loja, mas não é o tipo de cliente mais importante para nós.

A nível de clientes que entram aqui diariamente, atendemos todo o tipo de gente. Há pessoas que têm um poder de compra diferente, compram umas coisas mais sofisticadas, mais caras, e há outras que optam por coisas mais económicas, que também aqui temos. Contamos com clientes certos de há muitos anos. Alguns já cá vêm desde que eu comecei a trabalhar na Drogaria.

CL – Há algum cliente mais conhecido que venha aqui comprar produtos?

JJP – Mais conhecido… servimos durante muitos anos a família Espírito Santo. A Dona Matilde Espírito Santo e a mãe dela, a Dona Isabel, vinham cá. Os filhos da Dona Matilde ainda hoje nos visitam. Servimos também famílias da Quinta da Marinha e outras. A empregada do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa é outra das clientes que vem aqui regularmente comprar produtos de limpeza. O Professor Marcelo quando passa aqui e eu estou à porta da loja, vem sempre cumprimentar-me. É uma pessoa espectacular. Ele é mesmo assim.

Foto: Paulo Rodrigues

A CAMINHO DO FIM ANUNCIADO

CL – A passagem de testemunho da casa está programada?

JJP – Não está. Digamos que não estaremos aqui por muito mais tempo. Não há ninguém que possa seguir as nossas pegadas. Os nossos filhos têm a vida deles, estão bem e não pensam pegar nisto. Quando nós decidirmos fechar a porta o estabelecimento fecha, acaba. Infelizmente, dentro de muito pouco tempo, isto será mais um restaurante chinês, ou tailandês, ou indiano ou outro qualquer. É uma tristeza muito grande, até porque a Drogaria vai fazer falta a muita gente. E é também mais uma memória que se perde.

CL – Nunca foi proposto pelas autoridades locais um programa para preservar este espaço, enquanto museu vivo do passado de Cascais?

JJP – Não, ainda não houve nenhum autarca com essa capacidade. Nós gostávamos que pudesse haver essa possibilidade de preservar este estabelecimento, segundo o que dizem, um dos mais antigos, senão o mais antigo do País, mantendo a actividade no local onde começou, na mesma morada. Infelizmente, os nossos autarcas passam e nem ligam a lojas deste género. Basicamente, eles só pensam no Turismo. Se pudessem até tiravam o trânsito de Cascais só para o Turismo. Num país mais evoluído já teria havido esse contacto para manter a memória deste espaço. Aqui não. Infelizmente, vamos vivendo assim até aos últimos dias da Drogaria, que terá o seu fim.

CL – Qual o momento mais negativo que viveram neste estabelecimento?

JJP – A memória mais desagradável ocorreu aquando das grandes cheias de Novembro de 1983. A água subiu até à altura de 2,20m, causou-nos entre 80 e 90 por cento de estragos. Foi terrível. Conseguimos recuperar porque trabalhávamos bem. Se fosse hoje, isso era impossível. Na altura, não recebemos qualquer subsídio da parte da Câmara, zero. Entretanto, já tivemos mais duas ou três cheias, não tão violentas, a última das quais em meados de Dezembro passado. Tivemos água a cerca de 40cm de altura, felizmente não estragou muito. Não recebemos qualquer tipo de apoio.

CL – Quais as memórias mais positivas que levam deste espaço?

JJP – Foi uma loja sempre muito equilibrada. Temos a noção do dever cumprido, de ter respeitado a memória dos nossos antecessores. Foi uma loja sempre ligada a elementos da família. Houve sempre um bom ambiente entre nós. Tivemos sempre o cuidado de ter as nossas contas em dia, às Finanças, aos nossos fornecedores. Gostámos muito de atender bem os nossos clientes, que foram sempre fiéis à casa, foi um prazer enorme fazê-lo, deu-nos uma satisfação muito grande. Essa foi a alegria que mantivemos constantemente ao longo dos anos.

Foto: Paulo Rodrigues

PRODUTOS ‘MILAGROSOS’ CATIVAM CLIENTES

CL – Consta que vendem aqui um produto especial, fabricado com a ajuda de um regador centenário, considerado ‘milagroso’ por muitas pessoas?

JJP – Olhe, trata-se de um óleo com 132 anos de idade que nós preparamos para aplicar nos móveis. Existe desde o início da loja, tal como o regador em que é misturado. Este produto hidrata a madeira, tira os riscos e dá um brilho agradável. Os clientes chamam-lhe ‘o milagroso’. Isto não tem nada a ver com os óleos de cedro que há por aí à venda. Este óleo é produzido com três matérias-primas, sendo que uma delas, a principal, é a vaselina líquida. É um produto óptimo que se vende imenso, é muito procurado.

Temos também outro óleo especial para tijoleira, que leva dois componentes, o principal dos quais é o óleo de linhaça. É igualmente muito procurado.

CL – Além destes dois óleos especiais, quais os produtos que mais vendem?

JJP – Provavelmente, são o branqueador da roupa e o desentupidor de canos. Quando há muita humidade, também vendemos muito os desumidificadores com sílica, para colocar em roupeiros e gavetas.

CL – Atendendo à variedade de produtos que aqui vendem, depreendo que seja raro dizerem “Isso não temos!”

JJP – É verdade. A maior parte dos clientes que nos visitam à procura de qualquer coisa especial já vêm de outros lados. E dizemos isso com vaidade. Depois chegam aqui e dizem-nos: “É pá, eu já corri tudo. Têm isto?” Quando respondemos “Temos, sim senhor!”, até respiram fundo. “Ah, não há dúvida, vocês têm mesmo tudo”, comentam. E há outros que chegam aqui e já dizem logo “Como vocês têm tudo, também vão ter isto de certeza”. E, habitualmente, temos. É difícil dizermos que não há. O pior que existe é termos de dizer isso ao cliente. Depois vão embora e dizem a quem os quiser ouvir: “Aqueles fulanos não têm nada!” Isso é que não pode ser!

Autor: Luís Curado

1 comentário em “Drogaria Costa: Uma sobrevivente no coração de Cascais

  1. É uma vergonha que o Sr. Presidente da Câmara e a própria autarquia não faça nada. É verdade, o importante para o Sr, Carreiras é o turismo e a Dona Lili.

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