Quinta da Alagoa: A memória que se vai perdendo

Aquando dos trabalhos de requalificação do parque urbano da Quinta da Alagoa, em Carcavelos, noticiados pela publicação ‘O Guia da Cidade’, anunciava-se: “A zona dos antigos edifícios da quinta não está incluída nas obras actuais, mas já está prevista a sua recuperação, que passa pela construção de um auditório municipal e museu, cuja conclusão aponta para 2007, e para custos na ordem dos 4,8 milhões de euros”. A data foi largamente ultrapassada e ainda nada saiu do papel. Os antigos edifícios referidos chegaram a ser imóveis de grande valor e relevo, por onde passaram ilustres da vida social nacional e não só. Existem fotografias que provam a frequência do local por inúmeras personalidades, nomeadamente os reis D. Carlos e D. Amélia e o príncipe D. Luís, bem como o Rei D. Umberto de Itália, os condes de Paris e o arquiduque austríaco. Entretanto, o núcleo urbano antigo da Quinta da Alagoa, em Carcavelos, que inclui as ruínas de um Mosteiro Jesuíta seiscentista, uma adega de renome e o Chalé Wanda, está actualmente em risco de derrocada, ultrapassada que está a fase de ruína. Esta situação trágica poderia ter sido evitada se tivesse sido concretizado um dos projectos idealizados para recuperar e revitalizar este importante património histórico edificado, onde chegou a estar instalada uma das principais produções do afamado Vinho de Carcavelos, cuja tradição a Câmara Municipal de Cascais (CMC) está a tentar recuperar.

O Rei D. Carlos, a Rainha D. Amélia e o Rei D. Luís nos jardins da Quinta da Alagoa (1886)

Dez anos mais tarde, em Setembro de 2017, quando apresentou o projecto de requalificação previsto para a Quinta da Alagoa, que incluía os terrenos onde estava instalada a antiga fábrica Legrand, a autarquia cascalense fez saber que a intervenção previa também recuperar os espaços verdes do parque e requalificar as construções em ruínas, com o objectivo de lhes dar “usos culturais”, um anúncio que foi recebido com muito agrado pelos munícipes, sobretudo os residentes locais. Entre outras infraestruturas, previa-se, na altura, a construção de uma Biblioteca-Museu e de um Auditório. À data, o vice-presidente da Autarquia, Miguel Pinto Luz, a propósito da reconversão da Quinta da Alagoa, referiu-se ao “Chalé e a todas aquelas ruínas imobilizadas já há muitos anos”, para confirmar: “Vamos ter ali a oportunidade de ter um auditório e um espaço multiusos”. Estas duas infraestruturas foram mesmo abordadas num projecto para obtenção do Grau de Mestre em Arquitectura na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (FAUL), da autoria de Sandra Filipa Tomás Miguel, com orientação científica do Professor Doutor José António Jacob Martins Cabido.

No documento datado de Dezembro de 2018, intitulado ‘Lugares de Memória’ (https://www.repository.utl.pt/handle/10400.5/18155), defendia-se um programa que consistia na criação de um complexo cultural apoiado no Parque da Quinta da Alagoa, que previa a implantação de novas infraestruturas. De acordo com este estudo, as ruínas do Chalé Wanda e Mosteiro Jesuíta seriam transformadas numa Biblioteca-Museu distribuída por dois pisos com estruturas de apoio, nomeadamente recepção/bilheteira e loja do museu, bar/cafetaria, esplanada, instalações sanitárias e espaços destinados a funções administrativas do complexo cultural, tesouraria e sala de reuniões. Por sua vez, o espaço ocupado pela antiga adega onde era produzido o afamado Vinho de Carcavelos na Quinta da Alagoa (a última produção data de 1933), várias vezes premiado, albergaria uma sala polivalente e um grande auditório.

ALERTAS TÊM CAÍDO EM SACO-ROTO

No resumo de apresentação do estudo sublinhava-se: “Torna-se imprescindível encontrar soluções e estratégias que lutem contra a degradação do património arquitectónico, impedindo que estes edifícios atinjam, muitas das vezes, um estado de ruína irrecuperável, que a sua identidade seja perdida e a memória do lugar destruída”.

Alertava ainda a autora: “A Quinta da Alagoa, apesar da sua importância e contributo histórico na freguesia de Carcavelos, palco de uma das maiores e melhores produções do vinho da região, encontra-se actualmente num estado de degradação preocupante, agravada pela descontextualização da sua existência no ambiente que a envolve, o Parque da Quinta da Alagoa. Esta dissertação surge em defesa deste património edificado, da sua recuperação e reabilitação apoiada em estratégias que lhe devolvam a vida que foi arrancada à passagem do tempo”.

Este projecto, ou outro que possa vir a ser equacionado para o local, de recuperação das ruínas associado à vertente cultural, ainda não saiu do papel e o risco de derrocada apresenta-se como um desfecho que muitos fregueses lamentam em vários fóruns nas redes sociais, considerando que isso constituiria um destino trágico para um conjunto de imóveis com uma rica história associada, que importa preservar, depois de várias décadas de total abandono. A única infraestrutura que tem merecido, até ao momento, alguma atenção tem sido a zona da antiga adega, junto à qual foi instalada, em Julho de 2016, a sede do Grupo 16-Carcavelos da Associação de Escoteiros de Portugal e da 1.ª Companhia de Carcavelos da Associação Guias de Portugal, no seguimento de um projecto concorrente ao Orçamento Participativo de Cascais que acabou votado favoravelmente.

Antes disso, já a CMC, numa revisão do Plano Director Municipal, dava conta da criação de um Auditório Municipal na Quinta da Alagoa, apontando para a “construção de um auditório polivalente” que reunisse “as funções de auditório municipal equipado para um uso preferencial de actividades teatrais”, mas que, paralelamente, incluísse “um espaço polivalente para diversas actividades” e que também pudesse vir “a albergar o acervo museológico do Teatro Experimental de Cascais”. Justificava-se, no mesmo documento (https://www.cascais.pt/sites/default/files/anexos/gerais/p_eq_c_005_0.pdf), que a infraestrutura cultural iria “implementar-se numa área lateral na Quinta da Alagoa, sem grande valor paisagístico, contribuindo desta forma para uma harmonização no tratamento dos espaços exteriores da Quinta, enquanto jardim público de destacada qualidade”.

Com uma intervenção planeada para ser executada por fases, entre 2015 e 2017, estimava-se um orçamento total de 6,8 milhões de euros. Relativamente à descrição do edifício a construir, referia-se que a sala do auditório teria capacidade para 304 pessoas e que seria “tecnicamente apta para encenar produções teatrais, cinema, concertos e conferências”. A mesma ficha de intervenção assinalava ainda que, para além dos devidos espaços de apoio a artistas e logísticos”, a infraestrutura possuiria também “uma cafetaria que se constituiria como um equipamento de apoio ao jardim”. Por sua vez, na antiga adega, previa-se o funcionamento de “um espaço polivalente vocacionado para diversas actividades complementares com capacidade para cerca de 100 a 150 pessoas”, sendo que este espaço permitiria também “a realização de exposições temporárias”.

PATRIMÓNIO HISTÓRICO AO ABANDONO

A história da Quinta da Alagoa remonta ao século XVI. A propriedade é referida num documento datado de 1597 e acredita-se que o padre António Vieira possa ali ter vivido em 1685. Mais tarde, a posse da quinta foi atribuída à Companhia de Jesus. Depois de ter mudado de proprietário várias vezes ao longo dos séculos e de ter chegado a ser uma das principais quintas a produzir Vinho de Carcavelos, a propriedade foi loteada em 1980, tendo a parte remanescente, incluindo o núcleo urbano antigo, passado para a posse da autarquia em 1983. Hoje, dos terrenos originais da quinta, restam o núcleo verde remanescente que deu origem ao parque público existente actualmente, com vestígios da mata original e um lago alimentado por captação de águas subterrâneas que ocupa uma antiga pedreira.

No edificado, caracterizado por dois estilos arquitectónicos diferentes, típicos dos períodos em que foram construídos os dois principais imóveis, salientam-se um Mosteiro Jesuíta do século XVI e o Chalé Wanda, um palacete típico de finais do século XVIII, que pertenceu aos Morgados da Alagoa, à família do Eng.º D. Vasco Belmonte, até 1983. Nessa altura, foi acordada com a CMC a cedência da propriedade, com base num protocolo que previa a manutenção da zona rural e a utilização do antigo mosteiro e palacete como espaços culturais para usufruto da população. Em 1986, antes de terem sido efectuadas quaisquer diligências, o palacete foi alvo de roubo e sujeito a actos de vandalismo e pilhagem que destruíram o recheio do imóvel. Na altura, a autarquia fez saber que não possuía verbas para assegurar uma vigilância contínua dos edifícios à sua guarda.

Face ao abandono a que o espaço foi votado, sem obras de manutenção, a decadência e degradação acentuaram-se nos anos seguintes e, em 1990, a imprensa noticiou que o telhado do palacete tinha já desaparecido, sem que nenhum dos projectos referidos para o local chegasse a ser concretizado. Volvidos quatro anos, o executivo da CMC, presidido por José Luís Judas (PS), que liderou a Autarquia entre 1993 e 2001, anunciou a assinatura de um protocolo com a EIA – Ensino e Investigação e Administração, S.A. (Universidade Atlântica), uma empresa privada com sede em Oeiras, com vista à construção de uma universidade no local. Contudo, pouco depois, a Assembleia Municipal declarou a ilegalidade do processo, por não ter sido consultada. O mesmo argumento foi usado pela Associação de Moradores da Quinta da Alagoa, que decidiu avançar com um abaixo-assinado para travar o projecto.

Quase três décadas depois, as ruínas mantêm-se votadas ao abandono total, com os imóveis a mostrarem cada vez mais um estado avançado de degradação que parece estar ainda longe de ser travada. Até que isso aconteça, os fregueses, agastados com a perda de um património importante para a memória histórica da freguesia, do concelho e do País, começam agora a preocupar-se com a eventualidade de uma derrocada das paredes que já nada guardam no interior dos imóveis a não ser a memória daqueles que por ali passaram nas décadas passadas e recordam ainda o esplendor de outros tempos e episódios importantes das suas vidas. Resta-lhes, agora, o espaço verde do Parque para mostrar às gerações mais novas e assinalar como palco privilegiado de algumas estórias antigas para contar.

“Como era bonita a casa, o jardim e a lagoa. Sempre cheia de gente e sempre bem recebidos pela Família Cabral da Câmara. Que bom que foi enquanto durou. Que pena faz ver a degradação a que deixaram chegar a casa, o moinho e o jardim. Saudades”, comentou Rosário Sousa Ferreira nas redes sociais. Também João Lopes lamentou: “Projecto de recuperação de que se fala há anos, mas infelizmente a casa continua assim. É uma pena, todo o espaço envolvente merecia melhor e mais rápida atenção. Um dos jardins mais bonitos do concelho”. Já Pedro De Lancastre recordou: “Para mim, será sempre a casa da minha avó Anica. Mais uma casa que fez História”. Enquanto Zé Frederico Ulrich (Melo Breyner) escreveu: “Grandes férias e dias passei nesta quinta. Uma tristeza vê-la assim. Mais valia deitarem a casa abaixo de vez!” Resta apenas saber se ainda há tempo e vontade para o evitar.

CURIOSIDADES

Recentemente, foi vendido em leilão um lote de seis garrafas de vinho tinto ‘Carcavelos Quinta D’Alagoa’, Medalha de Ouro na Exposição das Caldas da Rainha de 1927, por 200 euros. Outras garrafas com a mesma referência têm sido adquiridas, igualmente em leilão, por valores entre os 25 e os 40 euros cada.

Autor: Luís Curado

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