Marques Valentim: “Devo ter umas 120 mil imagens arquivadas”

João Marques Valentim passou a vida a fotografar, por paixão, como profissional, sempre com a sua forma particular de registar os momentos que eternizou através das lentes da sua máquina fotográfica. Profissional de excelência, com um percurso feito de passagens por vários jornais e revistas, entre os quais o ‘Correio da Manhã’, fundado por Vítor Direito e Carlos Barbosa em 1979, este fotojornalista mantém, aos 73 anos, o olhar atento com que sempre olhou para a realidade à sua volta. Ao longo de décadas, captou inúmeras imagens de acontecimentos que fizeram a História do nosso País, acompanhando a trajectória de personalidades protagonistas de tantos episódios marcantes que nos marcaram o quotidiano. O seu arquivo de imagens testemunha bem esta ‘janela aberta’ sobre a nossa História comum.

Foi nesse imenso arquivo pessoal, guardado com esmero e enriquecido ininterruptamente durante décadas, que João Marques Valentim foi resgatar uma série de imagens de um dos principais heróis do 25 de Abril de 1974, para sempre festejado sob a denominação de uma ‘Revolução dos Cravos’, alimentada por desejos de mudança. ‘Salgueiro Maia – O Rosto da Revolução’ é o bilhete de apresentação da próxima exposição do repórter fotográfico residente em Cascais, que vai ser inaugurada em Portimão, no Algarve, no dia 2 de Setembro de 2022, na Galeria Manuel Teixeira Gomes. A mostra, que estará patente ao público até 30 de Setembro, inclui imagens inéditas do herói da Revolução que pôs fim ao regime ditatorial imposto por António de Oliveira Salazar (1889-1970), liderado na altura por Marcelo Caetano (1906-1980).

“A fotografia principal de Salgueiro Maia (1944-1992) que integra a minha exposição foi tirada em Janeiro de 1975, durante uma parada militar realizada pela Escola Prática de Cavalaria (EPC), em Santarém”, explica João Marques Valentim, que na altura em que registou a imagem desempenhava funções como repórter fotográfico na Agência Europeia de Imprensa, antes de ingressar nos quadros do jornal ‘A Luta’. “Lembro-me que ele estava no quartel e recebeu o General Ramalho Eanes. Esta é uma imagem cortada. Na imagem original, via-se também o perfil do rosto do General Eanes, à esquerda. Mais tarde, nesse mesmo dia, Salgueiro Maia participou uma parada pela cidade de Santarém. Outra fotografia que eu tenho dele mostra-o de pé em cima de um jipe a prestar continência, com o condutor ao lado”, recorda o autor da exposição.

 

FOTÓGRAFO DE KAÚLZA DE ARRIAGA

Quando ocorreu o 25 de Abril de 1974, João Marques Valentim tinha regressado a Cascais há apenas quatro dias, depois de cumprir o serviço militar em Moçambique. “Cumpri quatro anos de tropa, sendo que passei 26 meses em Moçambique, entre 1972 e 1974. Trabalhei como fotógrafo com o general Kaúlza de Arriaga (1915-2004), que chegou a publicar um livro (‘Coragem, Tenacidade e Fé’) com fotografias minhas. Ainda tenho esse livro, publicado em 1973, assinado por ele. Na altura, tinha 24 anos”, refere o fotojornalista, acrescentando: “Fui o único fotógrafo da FotoCine que recebeu um louvor pelo trabalho desempenhado em Moçambique. Não andei aos tiros, mas estive em zonas de guerra, fiz muitas reportagens fotográficas, acompanhei colunas militares, fiz a cobertura de vários acontecimentos. Essas imagens eram enviadas para o Continente”.

A Fotografia não foi o único trabalho que João Marques Valentim teve durante a sua passagem por Moçambique. “No último ano, fiz um programa de rádio das Forças Armadas, ‘O Objectivo’, difundido de segunda a sexta-feira, entre as 17h15 e as 18h15. O programa era gravado num estúdio da FotoCine, em Nampula, e depois era retransmitido para os emissores regionais do Norte, que por sua vez o radiofundiam. Era uma espécie de ‘Good Morning, Vietnam’ (Bom Dia, Vietname)”, explica o repórter fotográfico, que conseguiu cometer a proeza de passar pela censura sem ser notado: “A censura não me censurava. Mandei uma série de registos de discos e não disseram nada, por isso cheguei a tocar álbuns do Zeca Afonso (1929-1987), por exemplo, o LP ‘Venham Mais Cinco’, lançado em 1973.”

Além das músicas assinadas pelo cantor de intervenção autor de ‘Grândola, Vila Morena’, tema utilizada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) para confirmar que a Revolução do 25 de Abril estava em marcha contra o regime ditatorial, João Marques Valentim também passava no seu programa músicas de grupos estrangeiros que estavam na moda na década de 1970, como os britânicos Pink Floyd, que lançaram o álbum icónico ‘The Dark Side of the Moon’ em 1973. “Passava muitas coisas boas. O programa ia para o ar em directo e, ao contrário do que se possa supor, não era estritamente militar, era também dirigido à comunidade. Tinha mesmo muita audiência junto dos civis, sobretudo da malta nova, porque não tinha publicidade e tocava boa música”.

“NA ALTURA NÃO IMAGINAVA QUE IA SER FOTOJORNALISTA”

No dia 25 de Abril de 1974, João Marques Valentim estava em Cascais. “Na altura, ainda não imaginava que ia ser fotojornalista. Era para ir a Lisboa nesse dia. Contudo, às 7h00, recebi um telefonema do meu tio a dizer-me para não ir por estar uma grande confusão na cidade. ‘Liga o rádio’, disse-me ele. Comecei a ouvir os comunicados do posto de comandos do MFA. Fiquei em pulgas. Para mim, a liberdade era boa. Liguei a dois amigos da minha geração, que tinham estado na guerra na Guiné. Pensámos ir para Lisboa, mas acabámos por não ir. Percebemos que ia acontecer qualquer coisa com grande significado. Decidimos ir ao Pão de Açúcar comprar bens alimentares cada um para a sua família, não fosse a coisa dar para o torto. Entretanto, à tarde, já fizemos uma festa enorme, porque percebemos que o 25 de Abril ia mesmo para a frente”.

Com a Liberdade desenhada no horizonte, João Marques Valentim acabou por abraçar a profissão que tanto gostava construindo um percurso de muitos cliques replicados por uma infindável sucessão de acontecimentos a que assistiu enquanto fotojornalista. “Eu tenho um espólio muito grande. No total, devo ter umas 120 mil imagens arquivadas, negativos. Só para aí uns 5 por cento é que estão digitalizados. Trabalhos de reportagem que eu fiz ao longo de 50 anos. Decidi seleccionar 50 fotografias, a preto e branco, e preparar uma exposição intitulada ‘E Depois do Adeus – Fotografias com História’, que esteve patente ao público em Albufeira, em que inclui 50 documentos fotográficos relacionados com os últimos 50 anos da nossa Democracia, desde Salgueiro Maia, o rosto do 25 de Abril, até ao actual Presidente Marcelo Rebelo de Sousa”.

“Quando estava a preparar a exposição, agendada há dois anos, mas que teve de ser adiada em 2020 e 2021 devido à pandemia Covid-19, recebi um telefonema de Pedro Adão e Silva, o actual Ministro da Cultura, que na altura era o comissário executivo das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, que me perguntou se eu não me importava de ceder a imagem de Salgueiro Maia que tinha publicado nos meus ‘posts’ no Facebook. Aceitei ceder a imagem para assinalarem os 30 anos da morte (3 de Abril 1992) do militar identificado como sendo o ‘Rosto da Revolução’. Por curiosidade, nesse mesmo dia e à mesma hora, estava a inaugurar em Albufeira a minha exposição. Acabei por receber apoio informático e tive a minha exposição divulgada no site das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril”, explica o fotojornalista.

NA TERRA QUE VIU NASCER SALGUEIRO MAIA

Com base nos contactos estabelecidos, João Marques Valentim decidiu preparar com o material fotográfico de que dispõe uma exposição dedicada ao tema ‘Salgueiro Maia – O Rosto da Revolução’. “Como o militar de Abril nasceu em Castelo de Vide e está ali sepultado por seu desejo expresso (doou, inclusive, à Câmara Municipal o seu espólio, que se encontra exposto na Casa da Cidadania Salgueiro Maia, inaugurada em Julho de 2021), resolvi fotografar, em Julho passado, vários espaços e lugares existentes na vila relacionados com a sua vida, para complementar a selecção de imagens recolhidas para a exposição. Dei conta deste projecto à Autarquia, que nomeou uma pessoa para me acompanhar e servir de cicerone para a realização do trabalho. Visitei a casa de Salgueiro Maia, o museu, o memorial dele no castelo, o jardim com o busto e o local onde está sepultado.”

Entretanto, no seguimento de uma conversa mantida com o autarca de Castelo de Vide, António Pita, surgiu também a possibilidade de desenvolver um novo projecto. “O Presidente da Câmara ficou a saber que eu tinha sido militar, como fotógrafo, em Moçambique, e perguntou-me se tinha imagens da Guerra do Ultramar. Disse que sim, e fui convidado para fazer uma exposição que nunca tinha feito. Agendou-se uma mostra, ainda sem data definida, a que deverei chamar ‘O Povo e a Guerra: Moçambique 1972-1974’. Entretanto, deverei realizar também em Castelo de Vide, em Abril de 2023, a mesma exposição que vou fazer em Portimão, ‘Salgueiro Maia – O Rosto da Revolução’, e está ainda combinado apresentar a exposição ‘E Depois do Adeus – Fotografias com História’, sobre os 50 anos do 25 de Abril. Esta mesma exposição vai ser realizada em Silves, em Abril de 2024”, revela o fotojornalista.

HISTÓRIA DE UMA IMAGEM DEDICADA À PAZ

João Marques Valentim é autor de uma fotografia dedicada à Paz de particular significado. A história dessa imagem, que tem vindo a divulgar em vários suportes, é explicada pelo próprio: “Trata-se da imagem de uma bota com uma pomba branca em cima. Eu sempre fui contra a guerra em geral. Quando estava a cumprir tropa em Moçambique, resolvi criar uma imagem com uma mensagem forte dedicada à Paz. Um dia, engraxei uma bota, comprei uma pomba branca, que por acaso era um borracho, por isso é que não voou, posicionei a pomba em cima da bota e, com alguma paciência, fiz a foto”.

A imagem, assumida como sendo uma posição crítica da guerra em África, não pôde ser divulgada de imediato. “Tive esse negativo guardado até regressar a Portugal, porque aquilo era subversivo. Entretanto, deu-se o 25 de Abril de 1974 e a guerra nas ex-colónias portuguesas em África terminou. A primeira vez que a imagem da bota com a pomba em cima foi divulgada foi num livro, intitulado ‘Combatentes do Ultramar – Memória da geração que viveu a guerra’ (2003), escrito por Manuel Andrade Guerra (1946-2021), antigo diretor-adjunto do jornal ‘Correio da Manhã’, refere o fotojornalista.

Essa não foi a única vez que a imagem simbólica criada em Moçambique foi utilizada pelo seu autor para exprimir a sua posição a favor da Paz. “Em Janeiro de 2015, quando ocorreu o ataque terrorista contra a sede do jornal satírico francês ‘Charlie Hebdo’, em Paris, que causou 12 mortos, lembrei-me de pintar a pomba com as cores da bandeira francesa e oferecer essa imagem à Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP). Na altura, estava a colaborar com o jornal da LBP e a ideia era eles enviarem a imagem para França, para os bombeiros franceses”, explica João Marques Valentim.

Já este ano, a imagem da bota com a pomba em cima voltou a ser utilizada pelo fotojornalista num dos seus projectos. “Com a invasão da Rússia à Ucrânia, iniciada na madrugada do dia 24 de Fevereiro deste ano, decidi voltar a usar esta imagem, a última que integrou a exposição ‘E Depois do Adeus – Fotografias com História’, desta vez com a pomba pintada com as cores da bandeira ucraniana”. Esta mesma imagem vai ser exposta também numa tela de tamanho gigante na exposição que o fotojornalista tem previsto realizar em Castelo de Vide, com o apoio da Câmara Municipal local.

Foto: Paulo Rodrigues

 

Autor: Luís Curado

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