Sozinho na vertigem azul com um recorde para alcançar

Desde sempre, o Homem alimentou o desejo de voar, libertar-se das amarras da gravidade e levantar voo. Os seres alados preencheram o imaginário de muitos sonhadores. Alimentaram as suas crenças, os seus mitos, os seus desejos de progresso. O Ornitóptero idealizado por Leonardo da Vinci, a famosa Passarola do padre e cientista português Bartolomeu de Gusmão, as aventuras imaginadas por Júlio Verne, os visionários que construíram as primeiras máquinas voadoras… todos tinham em comum a ambição de cumprir o sonho de voar, de alargar os horizontes da capacidade humana. 

Hoje, num Mundo tecnologicamente tão surpreendente quanto frenético, em que a inovação torna a actualidade obsoleta a cada instante, o Homem continua a desejar levantar os pés do chão e voar rumo à vertigem azul que paira sobre a sua cabeça, inebriado pela mesma atracção que deu a conhecer Ícaro. Alguns aventureiros preferem fazê-lo o mais possível entregues a si mesmos, colocando à prova as suas capacidades e resistência física e mental, contra todos os riscos. Uma das actividades que mais põe à prova esse desejo de conquista é o Parapente, uma das formas mais básicas de voar ao sabor do vento, sem grandes artifícios.

Recentemente, Carlos Lopes, um piloto de 45 anos com um currículo invejável neste domínio, com muitas horas de voo no activo, alcançou um recorde que mereceu destaque entre os praticantes desta modalidade. No passado dia 9 de Outubro, com partida da Serra de Patu no Estado do Rio Grande do Norte e chegada no Estado do Piauí, no nordeste do Brasil, o parapentista da Associação de Voo Livre de Sintra conseguiu a proeza de bater o Recorde Nacional de Distância Livre com um voo de 502,1 quilómetros. A aventura demorou cerca de 11h30 a ser cumprida, com algumas peripécias pelo meio. Não é para todos!

TESTEMUNHO NA PRIMEIRA PESSOA

Jornal ‘O Correio da Linha’ (JCL) – Que preparação fez para poder realizar esta façanha?

Carlos Lopes (CL)– A preparação começou há cerca de seis anos, em 2013, sempre a melhorar resultados e performance. 

JCL – Já ia decidido a bater o recorde, ou isso foi uma ideia que começou a materializar-se durante o voo? Quando é que sentiu que podia bater o recorde?

CL– Fiz este voo acompanhado por dois amigos de aventuras, o Eusébio Soares e o Alex Louvarte, este natural de Espanha mas a viver e a trabalhar no México há mais de 20 anos. O nosso objectivo era entrarmos para o clube dos 500km, onde apenas figuravam quatro pilotos em todo o Mundo, que tinham conseguido alcançar esta marca a partir de descolagem natural, sem a ajuda de força mecânica. O recorde português estava em 481km e era do Eduardo Lagoa. Ao quilómetro 360, o meu amigo Eusébio aterrou e eu tive que decidir se abortava o meu voo ou seguia em frente. Fiz as minhas contas e percebi que era possível alcançar os 500km. Foi essa a razão de não ter aterrado ali e acabar por conseguir bater o recorde. 

JCL – Quais as principais dificuldades que enfrentou durante o trajecto? 

CL– A primeira dificuldade foi a descolagem por causa do vento muito forte. Descolámos com muita dificuldade no limite mesmo do aceitável. Depois tivemos de ultrapassar a serra, ganhar altura para passar por cima em segurança, o que implica alcançar o dobro da altura que a serra tem, neste caso passar com 1.250m no mínimo. Descolámos às 6h30 da manhã, a essa hora a actividade térmica, que é o que nos faz subir, é ainda muito fraca. Por isso, os primeiros 100km foram muito difíceis, com o solo logo ali. 

JCL – Qual foi o percurso realizado?

CL– Saímos da serra de Patu, no estado do Rio Grande do Norte, atravessámos todo o estado do Ceará e aterrámos junto da cidade de Piri-piri, já no estado do Piauí.

JCL – Durante o voo viu alguma coisa no solo que o tivesse surpreendido/cativado, que o tivesse inspirado?

CL– O terreno é muito inóspito, muito seco, só os açudes e povoados se destacam. A barrarem do Castanhão é imponente, acumula duas vezes mais água que o nosso Alqueva. Voámos por cima desta infraestrutura. Passámos por lugares tão afastados de tudo que se pousássemos poderíamos demorar dias para conseguir sair de lá.

JCL – O que sentiu quando soube que tinha batido o recorde? 

CL – Uma felicidade imensa, mas fiquei triste ao mesmo tempo por não poder partilhar o feito com o Eusébio Soares, que tinha ficado no quilómetro 360. 

JCL – Este foi o seu voo mais longo? Realizou outros voos que o tivessem marcado?

CL – Sim, este foi o mais longo. Já fiz vários voos com mais de 400km e muitos com 200km e 300km. O que mais me marcou foi um de 250km no meu primeiro ano no Brasil, em 2013. Tinha começado a voar há apenas dois anos e ainda tinha pouca experiência. Aterrei numa vila onde tinha o campo de futebol cheio de pessoas, com crianças e até animais à espera, pois como tinha andado a dar umas voltas por cima da vila as pessoas convergiram para o campo onde acharam que eu iria pousar o que acabou por acontecer. São indescritíveis esses momentos de euforia e curiosidade das populações.  

XIXI RESOLVIDO COM GARRAFAS DE ÁGUA VAZIAS

JCL – Num voo que dura tantas horas, como é se que passa o tempo lá em cima? Leva alguma coisa para comer? O que faz quando é preciso ir à casa-de-banho?

CL– Sim, levamos comida, frutos secos, fruta fresca, barritas energéticas e muita água. Chego a levar 10 litros de água, embora a maioria só sirva para poder ajustar o meu peso total em voo, que deve estar dentro dos limites aceitáveis para a asa que utilizo. Para a questão da casa-de-banho, as garrafas de água que bebo vou reutilizando para o xixi e vão comigo. Assim o peso é sempre o mesmo. É a técnica que utilizo, mas existem outras…

JCL – Que tipo de equipamentos transportou consigo para o auxiliarem nesta conquista?

CL – Asa, cadeira, dois paraquedas de emergência, dois aparelhos GPS, altímetro, bússola, aparelho spot via satélite (que envia a minha posição mesmo sem nenhuma cobertura de rede e onde posso pedir socorro em caso de emergência), dois rádios, smartphone, canivete suíço, kit de primeiros socorros e outras coisas.

JCL – Qual a razão de este recorde ter sido batido no Brasil e não aqui, em Portugal?

CL– Em Portugal não temos tempo útil necessário nem conseguimos voar com tanto vento nem descolar tão cedo. É difícil começar um voo em Portugal antes das 12h00, lá às 6h30 já dá.

JCL – Em território nacional, quais foram os voos mais marcantes que realizou?

CL – Em Portugal já fiz vários voos com mais de 250km, mas é difícil passar a barreira dos 300km, embora não seja impossível. 

JCL – Quais são os trajectos mais interessantes para praticar Parapente em Portugal?

CL– Para voos grandes é a Serra da Estrela e Castelo de Vide, sempre com saída para o lado espanhol. 

SISTEMAS DE SEGURANÇA PARA EVITAR MALES MAIORES

JCL – No caso de algo correr mal, que sistemas de segurança transporta um praticante de Parapente?

CL – Dois paraquedas de emergência, rádio spot via satélite, sistema Live-Tracking e kit de primeiros socorros.

JCL – Como nasceu a vontade de praticar esta modalidade?

CL– Tenho um sócio amigo meu que já praticava. Um dia, acabei por experimentar e gostei imenso.

JCL – Desde quando é um praticante de Parapente?

CL– Desde final de 2010. 

JCL – Em média, quantas horas dedica por ano a esta actividade?

CL– Cerca de 300 horas de voo.

JCL – É muito caro praticar Parapente? Quanto pode custar o equipamento completo para alguém que deseje iniciar-se nesta modalidade?

CL – Depende dos objectivos de cada um. Um iniciante com 3.000 a 5.000 euros já consegue adquirir o equipamento mínimo para voar.

JCL – Quais os conselhos que daria a alguém que esteja a pensar dedicar-se a esta actividade?

CL– Frequentar o curso de Parapente, que é simples e rápido. Assimilar tudo o que o instrutor diz e divertir-se à grande sempre de forma responsável. Juntar-se a um grupo de praticantes para evoluir após o curso. 

JCL – Quais as próximas conquistas que deseja alcançar com o Parapente?

CL– Fazer 600km, que é mesmo muito difícil (ainda ninguém no Mundo conseguiu), melhorar as minhas prestações a nível pessoal em competições e ajudar a Selecção Nacional de Parapente a ganhar os títulos europeu e mundial da modalidade. 

JCL – Qual o voo mais desejado que ainda não tenha efectuado?

CL – Voar por cima do Monte Branco e Himalaias. 

JCL – Conte-nos um episódio mais marcante que tenha vivido durante um dos seus voos?

CL– Foi agora com esta conquista, no final do voo. Só nos últimos minutos é que se soube que realmente conseguia alcançar os 500km. Outro momento marcante foi vivido em África, na Tanzânia. O meu GPS ficou baralhado, quase me perdi, e a minha passageira começou a ficar em stress com medo de podermos aterrar fora de uma zona segura, porque tinha medo dos leões… 

SUSTOS, PRAZERES E PLANOS FUTUROS

JCL – Já apanhou algum susto durante um voo?

CL – Sim, já uma vez tive que lançar o paraquedas de emergência na Serra da Estrela. 

JCL – Qual foi o momento que lhe deu mais prazer desde que pratica esta actividade?

CL – Ser o primeiro piloto do Mundo a descolar em parapente bilugar (com um passageiro) do topo do Kilimanjaro, em África, num projecto social que fizemos com uma escola e poços de água para os grupos Massai. Isto depois de uma caminhada que durou sete dias de ascensão ao cume da montanha.

JCL – Planos próximos?

CL– Participar na Taça do Mundo em Pokhara, no Nepal.

PERFIL

Nascido a 15 de Setembro de 1974, Carlos Lopes começou a praticar Parapente no final de 2010, cumprindo o seu primeiro voo na distância de 6km em Arruda dos Vinhos, em Fevereiro de 2011. Começou a competir pela primeira vez em Junho desse mesmo ano em Castelo de Vide, iniciando a sua carreira desportiva ao nível competitivo. Entusiasta da modalidade, é um apaixonado pelo voo de Cross Country (XC). 

Em 2013, Carlos Lopes participou no Mundial de XC em Quixadá (Brasil), onde subiu ao terceiro lugar do pódio. Dois anos mais tarde, em conjunto com Eusébio Soares, bateu o Recorde Nacional com 400km percorridos no mesmo voo. Em 2016, em África, tornou-se no primeiro piloto do Mundo a subir e descolar com um parapente bilugar do topo do Kilimanjaro (5895mts). Ainda nesse ano, em Quixadá, efectuou vários voos com mais de 400km.

Actualmente, Carlos Lopes é detentor do Recorde Nacional de Bilugar com 212,5km, num voo efectuado no Brasil, e também Recordista de bilugar com descolagem em Portugal, com 173 km. Em 2017, o parapentista voou em Patú e Quixadá fazendo num total de 2.356km em apenas 12 dias contabilizando cerca de 72 horas de voo. Agora, novamente no Brasil, o piloto alcançou o Recorde Nacional de Distância Livre com um voo de 502,1 quilómetros durante 11h30.

De referir que Carlos Lopes ficou mundialmente conhecido como Iron Man (Homem de Ferro), após uma sequência inédita de voos com mais de 300km, realizados durante seis dias consecutivos. 

Autor: Luís Curado

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.