Bombeiro orgulhoso do dever cumprido

Carlos Alberto da Silva Bastos tem 84 anos, a maioria dos quais ao serviço dos Bombeiros Voluntários de Paço de Arcos. Natural desta localidade do concelho de Oeiras, onde sempre viveu, entrou para a corporação em 1943, com apenas 14 anos, e manteve-se no activo durante 52 anos, ao longo dos quais assumiu várias funções até ao topo da sua carreira. Ao longo do percurso frequentou todos os cursos de formação até à categoria de Chefe. O amor à causa dos bombeiros acabou por fazer com que chegasse com naturalidade ao posto de Ajudante de Comando, em 1978. Esteve várias vezes à frente da corporação como comandante interino. Em Agosto de 2000, entrou para o Quadro Honorário da corporação, como 2.º Comandante. 

Este bombeiro exemplar cumpriu um percurso marcado por muitas histórias para contar e por uma significativa colecção de louvores. Entre as distinções recebidas, destaca-se o prestigiado Crachá de Ouro atribuído pela Liga dos Bombeiros Portugueses, que também o agraciou com as medalhas graus Ouro e Prata, por serviços praticados de particular relevo no âmbito do Município e do País. Mais recentemente, recebeu também a Medalha de Mérito Municipal Grau Ouro, atribuída em Junho de 2018 pela Câmara Municipal de Oeiras. Na vasta lista de louvores que lhe foram atribuídos, contam-se também distinções entregues pelo Instituto dos Socorros a Náufragos, entre as quais uma medalha de ouro.      

Carlos Alberto da Silva Bastos carrega no orgulho a certeza de sempre ter cumprido os seus deveres para com a causa dos bombeiros com o melhor do seu esforço. Nunca procurou conquistar medalhas, mas sim cumprir as tarefas que lhe foram atribuídas com convicção e empenho, por vezes desafiando mesmo regras impostas para conseguir garantir um bem maior: salvar vidas humanas. Como tal, as distinções foram sempre recebidas com “surpresa”. Também passou pela política. Hoje, os percalços da saúde e a necessidade de os atenuar com passagens frequentes pela farmácia complicam um pouco as contas da vida, mas não beliscam a memória de um homem que recorda com emoção toda uma vida dedicada a ajudar o próximo. 

FAMÍLIA INFLUENCIA INGRESSO NOS BOMBEIROS

Jornal Correio da Linha (CL) – O que o levou a ser bombeiro?

Carlos Bastos (CB)– O meu pai foi bombeiro. O meu tio também foi bombeiro. O pai da minha mulher também era bombeiro. Daí o conhecimento da actividade. Foi daí que veio a influência. Entrei com 14 anos para os bombeiros e ajudava em muita coisa. Lavava as instalações do quartel, ainda na rua Costa Pinto, nas instalações antigas. Foi nesse edifício que fui chamado em miúdo para receber a farda: um fato-macaco com uma lista azul. 

CL – Como foi a evolução da sua carreira dos Voluntários de Paço de Arcos?

CB – Entrei como cadete em 1949, tinha 14 anos. Cheguei a aspirante quatro anos mais tarde. Recebi instrução na escola de bombeiros e passei a bombeiro de III Classe em 1955. Voltei a fazer exames para bombeiro de II Classe, alcançando esta categoria em 1959. Em 1968, depois de novos exames, alcancei o posto de bombeiro de I Classe. Passei a Subchefe em 1971, cheguei a Chefe em Janeiro de 1978 e acabei por atingir o posto de Ajudante de Comando em Maio desse mesmo ano. E foi assim a minha vida nos Bombeiros Voluntários de Paço de Arcos. Fui ainda comandante interino em várias ocasiões, na ausência do comandante da corporação.

CL – Além de bombeiro, também se dedicou ao Desporto…

CB – Pratiquei desporto no Clube Desportivo de Paço de Arcos. Joguei ténis de mesa durante 26 anos. Acabei por me zangar com o presidente da direcção na altura. Zanguei-me porque eles tinham uma sala que alugavam para ginástica e outras actividades e a gente tinha um jogo marcado com a Académica da Amadora e a sala estava ocupada. Era um jogo oficial da Associação de Ténis de Mesa de Lisboa e nós não podíamos jogar porque ele negou-se a facilitar a sala. Acabámos por perder como se tivéssemos sofrido uma derrota em casa. Isso abalou-me bastante e eu disse para comigo: “Acabou o Paço de Arcos”. Passei a praticar desporto no Grupo Desportivo da Sociedade Industrial de Produtos Eléctricos (SIPE), uma conhecida empresa de Carcavelos onde trabalhei durante 24 anos. 

CL – Qual era a sua actividade profissional?

CB – Na SIPE era mecânico de bancada na linha de montagem de moldes de compressão e injecção. A empresa estava situada na Quinta da Alagoa e fabricava material eléctrico. Há uns tempos fui lá fazer uma visita e só vi o terreno, já tinha ido tudo abaixo. Senti muita pena. Como era também bombeiro, cheguei a organizar um programa de segurança na empresa. Na altura, não havia extintores, não havia nada. Mandaram-me tirar um curso de higiene e segurança em Lisboa e passei a ser responsável pela segurança da empresa. 

CARREIRA RECHEADA DE MOMENTOS MARCANTES

CL – Ao longo da sua carreira viveu certamente muitos momentos especiais. O que recorda com mais prazer?

CB – Quando festejávamos o aniversário da Associação, a 30 de Outubro, havia sempre um exercício. Nós tínhamos uma secção de Socorros a Náufragos, de salvamentos marítimos, e havia instruções de vez em quando. Na altura do aniversário da Associação vinha um barco que fundeava junto à doca onde é o Clube Náutico de Paço de Arcos, a cerca de 400 metros, e nós, a partir de terra, tínhamos de ligar um cabo para o barco através de um foguete que levava uma espia e montávamos um cabo de vaivém para retirar pessoas como se o barco estivesse a afundar. Gostávamos muito de fazer isso.

CL – Quais as situações mais complicadas que enfrentou?

CB – Recordo um caso de salvamento marítimo que me marcou particularmente. Foi em Janeiro de 1966, quando o arrastão Santa Mafalda encalhou em frente ao Forte de São Julião da Barra. O barco ia a sair da barra quando sofreu uma avaria no cabo do leme e foi parar às rochas junto ao forte, onde começou a meter água. Tinha 30 pescadores a bordo. Montámos um cabo de vaivém e salvou-se o pessoal todo. O mestre foi o último a sair da embarcação e trazia um cão com ele.

Outra situação que me marcou bastante ocorreu em Março de 1951. Na altura era ainda miúdo, cadete da corporação. Dias seguidos de fortes chuvadas causaram uma derrocada perto de Caxias, na Linha de Cascais, próximo do farol de Gibalta, que provocou a morte a dez pessoas e cerca de 40 feridos. O terreno cedeu e uma rocha enorme caiu em cima de uma carruagem. Várias pessoas ficaram presas debaixo dos destroços. O farol veio todo abaixo. Foi terrível. 

Recordo outra tragédia registada também na Linha de Cascais, em Maio de 1963, quando a cobertura das plataformas da Estação Ferroviária do Cais do Sodré abateu. Este acidente causou 49 mortos e mais de 60 feridos. Os cabos eléctricos da linha férrea estavam fixados à parede e ao tecto. Os cabos puxaram a parede e veio tudo abaixo. Chamaram os bombeiros de toda a zona, que estiveram um dia e uma noite a trabalhar. Ficaram muitas pessoas presas debaixo da placa, que teve de ser partida com martelos pneumáticos para resgatar os corpos. 

CL – E incêndios? Quais os piores a que assistiu?

CB – Participei no combate às chamas num incêndio em Laveiras (Caxias) numa zona de mato. Perto havia um bairro de barracas. Fomos com uma viatura que tinha acabado de ser atestada, pelo que estava com o depósito cheio. Os bancos do pessoal estavam assentes sobre o depósito. Começámos a atacar o incêndio, mas as chamas eram muito altas e havia muito vento, que empurrou as chamas para onde estávamos. O motorista ainda tentou retirar a viatura, mas deixou o motor ir abaixo. Como o motor não pegava e as chamas estavam cada vez mais próximas, o motorista e outro bombeiro que ia comigo deram à sola e eu fiquei sozinho dentro da viatura. Quando sai para fora não via nada com o fumo. Comecei a correr e não reparei que estava à beira de um barranco acabando por cair e vir aos trambolhões por aí abaixo até perder os sentidos. As pessoas que viviam nas barracas lá em baixo acudiram-me e chamaram os bombeiros. Fui assistido, mas não cheguei a ir ao hospital. Curiosamente, as chamas passaram pela viatura e não aconteceu nada. Na altura já era Chefe. 

Outra situação complicada vivida a combater as chamas ocorreu num grande incêndio em Vila de Rei. Estivemos lá três ou quatro dias chamados pela Inspecção. Eu já era ajudante de comando. Enfrentámos lavaredas com mais de dez metros de altura. Mandaram-nos para um terreno onde havia um casal com gado e eu a ver as chamas a virem na nossa direcção com um pinhal à volta, era medonho. Eu a chamar pelo rádio para nos trazerem água e nada. Estávamos já a preparar-nos para ir para debaixo do carro para nos protegermos das chamas quando chegaram outros efectivos para nos ajudarem. Foi um grande susto que eu apanhei. 

O grande incêndio na Serra de Sintra, em Setembro de 1966, em que morreram 25 militares do Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa (RAAF) também foi muito mau. Eram 26 militares do regimento de Queluz e morreram 25. Só um é que se salvou, ficou sem unhas nos dedos e contou a história do que aconteceu quando estavam a ajudar a combater o incêndio e foram surpreendidos pelas chamas. Até agora, todos os anos naquela data é feita uma homenagem no terreno junto à placa onde está o nome deles (ver caixa no final do texto). 

RABECADA PRIMEIRO, LOUVOR DEPOIS

CL – Lembra-se de mais algum episódio complicado que o tenha marcado. Por exemplo, no domínio dos socorros a náufragos?

CB – Uma vez, um barco de recreio estrangeiro apanhou mau tempo e entrou na barra acabando por encalhar no areal junto ao Bugio com ondulação elevada. A bordo seguiam quatro pessoas, dois homens e duas mulheres. A Rádio Naval de Cascais teve conhecimento da situação e telefonou para os bombeiros para saber o que podíamos fazer. Eram para aí umas 03h00 da madrugada.  Tínhamos um barco pneumático com um motor de 50 cavalos que fazia a campanha das praias. O salva-vidas do Instituto de Socorros a Náufragos não funcionava por estar avariado, e nós com o barco pneumático, de noite, fomos quatro bombeiros, sem rádios e sem luzes, atravessar o rio em direcção ao Bugio a levar porrada de água. Entretanto, apareceram os pilotos da barra, que não podiam encostar ao barco sob risco de ficarem encalhados. Nós, como íamos no barco pneumático, tínhamos mais facilidade para encostar ao barco de recreio e conseguimos fazê-lo. Acabámos por retirar as pessoas e transferi-las para o barco dos pilotos da barra. Depois colocámos um cabo no barco encalhado e conseguimos passar o cabo de reboque aos pilotos, que acabaram por retirar a embarcação encalhada e levá-la até à doca do Bom Sucesso. Quando chegámos ao quartel levámos uma rabecada do comandante, que disse que não devíamos ter feito aquilo, sem luzes, sem rádio e à noite. Mas depois veio também um louvor do Instituto de Socorros a Náufragos e abafou a situação. Tenho ainda as medalhas do instituto.

CL – No seu entender, quais são as maiores dificuldades que os bombeiros enfrentam no desempenho da sua actividade?

CB – As coisas começaram a ser mais complicadas quando o Serviço Nacional de Bombeiros (SNB) acabou em 2003 para ser fundido, juntamente com o Serviço Nacional de Proteção Civil (SNPC) e a Comissão Especializada em Fogos Florestais (CEFF), no Serviço Nacional de Bombeiros e Proteção Civil (SNBPC), mais tarde denominado Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC).  O SNB, órgão coordenador nacional, foi imposto por várias lutas nossas, dos bombeiros, que fomos para a rua com os carros fazer barulho, para acabar com a situação de os Sapadores serem dirigidos por um militar. Fizemos reuniões. Conseguiu-se que o SNB fosse comandado por um comandante dos bombeiros, que depois era nomeado inspector. Havia fogos? Havia sim senhor! Havia áreas ardidas? Havia sim senhor! Mas como agora é que nunca houve. E porquê? Porque o SNB era um gabinete em que havia um inspector, tinha os adjuntos e tinha uma direcção. E o presidente da direcção também funcionava. O inspector dominava a situação do Norte ao Sul do País. Acabaram com o SNB. Por causa desta situação passou a ser a ANPC, arranjaram um nome para meter pessoas que não percebem nada de fogos no mato e os que estavam lá foram-se embora. E isto criou um mau ambiente geral nas corporações de bombeiros portuguesas e deixou de haver organização. Se na altura existisse o SNB a funcionar não morriam aquelas 66 pessoas no incêndio florestal de Pedrógão Grande, em Junho de 2017. Não estavam organizados. Então desviaram os carros para uma estrada que estava a arder… 

CL – O que podia melhorar na formação dos bombeiros?

CB – Há falta de instalações nos quartéis para ensinar e desenvolver a vertente prática da instrução. Os bombeiros não devem estar sempre sentados na cadeira a ouvir, têm de praticar, de pegar no material, têm que apalpar o material, de ver o que estão a fazer, de pegar nas mangueiras, fazer ligações, praticar os salvamentos, ir a um terceiro andar buscar uma ou duas pessoas. Por vezes faltam casas-escola nos quartéis das corporações. Nem todas têm essa valência. Em Sintra, o Serviço Nacional de Bombeiros tem uma casa-escola, as corporações de Carcavelos, Estoril, Parede e Linda-a-Pastora também têm. Mas em Paço d’Arcos, mesmo no edifício novo, falta uma casa-escola.   

CL – Chegou a desempenhar algum cargo dentro da estrutura dirigente da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Paço de Arcos?

CB – Fui secretário da Mesa da Assembleia Geral durante a direcção de Tiago Fernandes. Estive também na Política, na Assembleia de Freguesia de Paço de Arcos, como militante do PS, tendo cumprido três mandatos. 

SURPRESAS E DIFICULDADES DA VIDA 

CL – Durante a sua carreira recebeu diversos louvores atribuídos por diferentes entidades. O que significaram para si estas distinções?

CB – Isso foram tudo surpresas. Eu nunca pedi medalhas, queria simplesmente cumprir o serviço que me era atribuído. Como adjunto do comando, só ia a comando interino quando o comandante não estava. E como fui quando morreu o comandante Araújo. Na altura, a Inspecção nomeou-me comandante interino. Estive sete meses nesse posto. Foi uma grande honra receber todas essas medalhas. 

CL – Como alguém que esteve dedicado à causa dos bombeiros durante uma vida inteira, sente-se hoje, nesta fase da sua vida, devidamente apoiado?

CB – É complicado. Descontei durante 50 anos para a Segurança Social e acho que merecia mais, se o vencimento fosse mais alto. O vencimento não era suficiente para eu agora receber mais alguma coisa. A minha reforma é baixa. Devido a algumas dificuldades financeiras que estou a atravessar, tenho recebido ajuda de uma instituição solidária, a Sol Fraterno. Os remédios estão cada vez mais caros e levam grande parte do dinheiro que eu e a minha mulher, Júlia, com quem estou casado há 58 anos, recebemos. 

HOMENAGEM A MILITARES MORTOS NA SERRA DE SINTRA

Todos os anos, no dia 7 de Setembro, o Exército Português presta homenagem aos 25 jovens militares do Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa (RAAF) falecidos no combate ao incêndio ocorrido em 1966 na Serra de Sintra. Este ano, cumpriu-se o 53.º aniversário da tragédia que mais marcou a história do regimento.

Como vem sendo hábito, a cerimónia de homenagem teve início na Igreja Paroquial de Colares, onde foi celebrada uma missa em memória dos militares falecidos, seguida de uma romagem até ao Pico do Monge, na Serra de Sintra, para deposição de uma coroa de flores junto ao local onde foram encontrados os corpos.

Autor: Luís Curado

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